
Otelo Overdrive
Parte 9
Marco gritava e chorava ao sair do ringue e Aghori precisou deixá-lo em um estado de consciência semelhante à catalepsia. O homem fora colocado sob uma maca e os remédios o impediram de sair caminhando pelo centro de treinamento. Contudo, após algumas horas deitado, o remédio deixou de fazer efeito e Marco conseguiu ao menos pensar. Ele só pensava na morte e em como ela gerava impotência e nojo. Nojo, essa palavra ganhava forma, finalmente: nojo da morte, de Aghori, de Próximo, de Andressa. O nojo era uma poderosa forma de nos distanciarmos do mal, pois nos repelia como dois ímãs conseguem se repelir na posição correta. O nojo deu lugar a raiva das mesmas pessoas.
Marco não tinha palavra para o que sentia, mas, se soubesse, seria revolta. Era uma sensação de que algo deveria ser feito, mas ele não sabia como. "Quem poderia mudar essa grande máquina em que eu sou só uma engrenagem, girando à revelia da minha vontade?" Marco sabia que ali ele era tão relevante quanto as blattarias que vivem nas fazendas de crescimento e que, quando cresciam, se tornavam proteína para consumo dos trabalhadores. Marco sentia-se como uma blattaria que estava adiando o dia de sua morte.
Apesar de sua desesperança quanto ao futuro que se desenhava em sua mente, ele tinha que se preocupar com o futuro de Flavio. Havia também Arashanai, mas ele não poderia ajudar a ambos, então, "ajude o garoto", diria seu pai, pois foi isso que o pai fez e que, provavelmente, o levou a morte. Flavio poderia ter uma chance: ele tinha somente treze anos e poderia ter uma vida diferente, em uma outra cidade. Marco pensava que precisaria saber uma forma de enviar o garoto para um lugar onde tivessem outras oportunidades e empregos. Marco pensou no lugar onde os lumpens viviam – poderia haver empregos e, sendo Flavio uma pessoa que tinha estudado, poderia conseguir um emprego também. O menino não era lumpen, não era parte da escória e poderia mostrar como era esforçado.
Após a partida dos clientes, Aghori apareceu. Marco já estava sentado e olhou para o treinador com ódio. Manteve o silêncio, mas seus olhos o denunciavam.
– Beba isso... – Aghori deu um copo para Marco com um líquido. – Imagino que se eu disser para você não me odiar, não vai adiantar. A morte vem para um dos espadachins: está no contrato. O que eu poderia fazer?
– O senhor poderia me dizer... – Marco hesitou e deu o último gole na bebida.
– Dizer, o quê?
– O senhor poderia me dizer o que fazer para uma pessoa sair da Cidade.
– Só existe uma forma, Otelo, e é como Mercúcio e os outros antes dele.
– Não tem como sair, como fazem com os lumpens?
– Sair como os lumpens? A única forma de um lumpen sair daqui é no estômago dos clientes.
– Os lumpens são expulsos da Cidade, não são, senhor? – Marco estava confuso.
– Nunca vi um que fosse. Quem quiser sair, tem que pagar, e é caro. Os lumpens não tem créditos para uma viagem como essa – eles nem tem como pagar onde morar.
Marco ficou em silêncio por alguns segundos. Pensou que deveria haver alguma forma de fugir, sair à noite e andar pela escuridão, onde ninguém pudesse ver.
– Senhor, não tem como uma pessoa só... sair, ir embora?
Aghori percebeu que Marco tentava encontrar uma saída, mas era necessário colocá-lo no mundo real para que ele vivesse sua vida sem sonhos vãos.
– Não tem como sair. Lá fora, depois da Cidade, é água. Eu já fui na área de pouso uma vez para carregar um cliente bêbado. As águas vão até o horizonte. A viagem que os clientes fazem não é opcional. Eles saem do continente e vem para cá voando. É único jeito.
Marco ficou parado por mais alguns segundos. Não sabia o que era um continente, mas preferiu não especular mais. Aghori já se mostrava impaciente.
– Obrigado, senhor. Boa noite.
Marco se levantou e trocou de roupa. Seu uniforme ainda tinha sangue, assim como suas mãos. Ao alcançar a calçada, caminhou devagar, pensativo. Marco tinha certeza que estava com o próprio destino traçado, assim como Arashanai. A dúvida era se Flavio precisaria seguir esse mesmo destino na Cidade. Marco ainda tinha dez mil créditos guardados da venda de seu banco de horas. Eram muitos anos de trabalho e poderiam ajudar a tirar o filho dali. A ideia ficou em sua mente e seria apresentada em um momento oportuno.
No apartamento, o sol estava nascendo nas janelas virtuais. As cores que se mesclavam naquele display digital eram agradáveis. Aos poucos, um círculo laranja aparecia e mostrava as copas das árvores, em um verde vivo. As folhas se moviam com suavidade e todas as árvores balançavam com tranquilidade. "Se existisse um lugar como este, seria um bom lugar para o Flávio viver", pensou Marco Aurélio, apesar de ter certeza que o mundo era todo em ferro e concreto e que a luz principal vinha de emissores de luz artificial.
Naquele momento, Flavio dormia. Marco pensou que não deveria acordá-lo, apesar da sensação de afastamento em relação ao filho. Em poucos meses, Flavio teria catorze anos e começaria a trabalhar. "Será que poderia trabalhar em algo que desse um futuro mais tranquilo?" No computador, era possível ver quais áreas o garoto estava se destacando e quais profissões poderia tentar exercer. Por um instante, Marco se surpreendeu com a lista: eram empregos que exigiam atividades repetitivas nos galpões das fazendas de blattarias. Marco não viu na lista empregos ligados a outros setores que a Cidade contratava.
Todos que conhecia trabalharam em algum setor ligado às fazendas. Ele não conhecera ninguém que trabalhava na produção de bioimplantes, computadores, outdoors ou das janelas virtuais. Além dessas pessoas, tinha o homem da Financiadora. Havia pessoas trabalhando na Financiadora, mas eram tão decorativos quanto a planta da sala de Próximo. "Haveria outros empregos? Haveria mais pessoas na Cidade produzindo essas coisas que usamos no dia a dia?"
Curioso, Marco pesquisou no computador quantas pessoas viviam na Cidade: "Neste momento, vivem 1873 pessoas na Cidade". Tentou outra pergunta, uma sobre o que era continente: "Continente é extensa porção de terra rodeada por oceanos". "Há vida nos continentes?". No mesmo instante da pergunta, surgiu um vídeo na tela. Mostrava crianças chorando, explosões e homens armados. Uma voz narrava o vídeo:
"Após a queda das falsas democracias no século vinte e um, um grupo de rebeldes tentou tomar novamente o poder como um governo opressor. Eles eram chamados de 'Arbeiten' e queriam roubar todas as propriedades dos homens e mulheres livres. A última derrota desse grupo ocorreu quando as grandes empresas juntaram forças para eliminar os rebeldes em benefício da liberdade. Para proteger a paz contra os grupos de lumpens que surgem de tempos em tempos, um grupo seleto de homens e mulheres aceitou morar em um lugar que garantiria que a liberdade nunca seria oprimida novamente. Eles batizaram este lugar de 'A Cidade'. Se houver um novo ataque contra a liberdade, a Cidade será o farol que guiará todas as pessoas novamente à ordem que garante igualdade e liberdade a todos."
Conforme o vídeo falava da Cidade, mostrava ela viva e cheia de cores, de pessoas felizes trabalhando. Não parecia a Cidade que Marco conhecia, mas ele sabia que era. Além disso, mostrava homens e mulheres bem vestidos, como os clientes, lado a lado e olhando para frente, como se esperassem ser chamados para uma luta. Marco pensou que deveria ser um vídeo feito com a função de entreter o espectador, como seu personagem Otelo. Ele não teria como ter certeza, mas depois do que precisou fazer aos clientes, pensou que seria algo comum para tornar as coisas agradáveis.
Não havia mais nada para pesquisar e Marco tomou banho para tentar tirar o sangue seco de suas mãos. Com exceção do sangue preso às unhas, o resto saiu com água quente. Na cápsula de sono, ficou deitado por um tempo, pensando na esposa e no filho. Apesar da incerteza sobre como deveria ser o continente, deveria ser um lugar melhor que a Cidade. Se não fosse, não faria sentido os clientes viverem lá. No dia seguinte, tentaria falar com Próximo para fazer um acordo. "Quem sabe este dinheiro não seja suficiente para tirar Nai e Flavio", pensou, esperançoso.