
Otelo Overdrive
Parte 10
A barra de proteína especial ajudou Marco a não ter sonhos àquela noite. Descansado, o homem acordou inspirado a falar com Próximo antes do treino. Flavio estava sentado no computador, estudando.
– Como está o seu braço, Flavio?
– Não dói mais, senhor.
"Senhor", ressoou a palavra na mente de Marco. Essa palavra ganhara um peso que não gerava uma boa sensação nele. "Senhor" e "senhora", pessoas em posições hierárquicas que faziam o que bem entendiam com ele por que um contrato dava esse poder. Eram palavras opostas à liberdade, pois denunciavam o desequilíbrio nas relações entre os homens. Eram palavras que ofendiam o seu lado humano e que, se ele pudesse, aboliria de sua vida.
– Flavio, você poderia fazer o favor de não me chamar mais de senhor?
Flavio olhou para o pai, sem entender.
– Pode me chamar apenas de pai?
– Se o senhor quiser, digo... O que eu digo?
– Você, pai...
– Então... você quer que eu lhe chame de pai?
– Isso mesmo, garoto. Pai. Eu sou seu pai, não sou seu senhor. Sabe, esses últimos dias eu chamei muitas pessoas de senhor. Eu cansei disso. Quero que você não precise chamar qualquer um de senhor. Está bem?
– Eu não entendi, pai.
– Mas vai entender. Apenas lembre-se disso: não chame qualquer um de senhor.
Marco tomou banho e, quando ia saindo, Flavio o chamou.
– Pai, como eu devo chamar a minha mãe?
– Pode chamar do que vocês combinarem, mas diga que eu prefiro que não seja de senhora. Está bem?
– Sim, pai. Bom trabalho.
Marco saiu do apartamento orgulhoso de sua conversa. Queria se aproximar de Flavio antes de enviá-lo para outro lugar: se nunca mais veria o filho, queria que ele tivesse boas lembranças e bons sentimentos, como orgulho, respeito, amor. Ficou pensando como seria a vida de Flavio fora da Cidade, no continente. O menino poderia ser um líder em um lugar onde as pessoas precisassem de alguém instruído, um filho de trabalhadores esforçados e que tinha muito a oferecer com a vivacidade da juventude.
O caminho entre seu apartamento e o local de treino pareceu menor. Perdido em seus pensamentos, Marco fez o caminho de maneira automática e entrou no prédio ainda idealizando a vida do filho no continente. Aghori estava parado, vendo os lutadores treinando quando ele chegou e, se aproximando do treinador, pretendia dar o primeiro passo antes de conseguir falar com Próximo e apresentar sua proposta.
– Bom dia, senhor. Eu gostaria de saber como faço para falar com Próximo.
Curioso, Aghori o levou para a própria sala.
– Sente-se. Bem, se não for algo realmente importante, não posso chamar Próximo.
– O senhor me disse que havia como sair da Cidade, uma pessoa sem dívidas poderia pagar para sair.
– Sim, uma pessoa rica. Você ficou rico de ontem para hoje a ponto de pagar sua dívida e a viagem?
– Não a minha viagem, senhor, mas eu tenho guardado dez mil créditos.
Aghori ficou em silêncio olhando para Marco, enquanto este aguardava.
– Otelo, Otelo... eu vou te perdoar, mas você precisa parar de ser idiota.
– Eu não entendi, senhor.
– Dez mil créditos é nada. Você queria tirar alguém daqui com isso? – Aghori suspirou, decepcionado. – Vamos colocar desta forma para você entender: dez mil créditos não pagam nem o jantar que os clientes lhe dão. O primeiro jantar que a Andressa pagou para você não saiu por menos de cem mil, isso só o seu jantar. Naquela noite, ela gastou algo em torno de um milhão de créditos entre bebidas, as apostas, o sexo, o jantar e a viagem. Com esses dez mil você não faz absolutamente nada. Entendeu agora?
– Sim, senhor. – Marco respondeu.
Marco estava aturdido com a resposta. Ficou em silêncio e Aghori o deixou com seus pensamentos. Enquanto estava sozinho, tentou pensar em algo, em alguma solução. Dez mil créditos eram muitas horas de trabalho e sua vida poderia ser tirada pelo dobro disso se não pagasse a Financiadora. Seu corpo posto em um prato valia mais do que seu corpo vivo. Pensando sob essa ótica, ele não valia nada vivo.
Por eliminação, Marco não tinha nada: nem créditos, nem bebida. Sexo pago era um acordo que o contrato só autorizava com clientes de Próximo; o jantar estava fora de questão e a viagem era seu desejo final. Restava apenas a aposta. Então pensou: "Se eu conseguisse apostas, poderia vende-las para Próximo". Porém, ele precisaria saber o que eram essas coisas que os clientes se interessavam.
Marco solicitou que Aghori voltasse para a sala.
– O senhor poderia me explicar o que é uma aposta?
Aghori explicou para Marco, de modo simples e que fizesse sentido. Próximo era dono da casa de apostas e ficava com parte dos créditos inseridos. O resto dos créditos eram distribuídos entre aqueles que apostassem nos vencedores. Contudo, essa era a parte menos relevante da noite, pois, salvo uma ou duas lutas menos relevantes, as outras tinham um final bem óbvio. A luta que mais movimentava créditos era a luta de morte, a luta final. Todos acabavam apostando no vencedor e só perdiam ou ganhavam créditos por causa das apostas das lutas que pagavam pouco.
– Senhor. Então, quem escolhe um lutador vencedor ganha mais dinheiro que os outros que escolheram o lutador derrotado?
– Sim. Em resumo é isso.
– E o senhor sabe quem vai ganhar as próximas lutas?
– Posso dizer que sim, ao menos, a maioria delas. Não é um segredo. Os lutadores que estão começando têm mais chances de ganhar, assim como os que não sofreram lesões.
– O senhor sabe quem ganhará a minha próxima luta, senhor? – A mente de Marco processava as informações como nunca havia feito. Precisava de uma solução, provavelmente, a mais extrema e a que exigiria mais sangue frio.
Aghori ficou em silêncio por um instante, examinando Marco.
– Sei... Por que você quer saber?
Então, Marco arriscou sua única ideia:
– Se o senhor disser que sou eu, eu quero fazer um acordo com o senhor.
– Que tipo de acordo? – Aghori baixou o tom de voz e se aproximou de Marco.
– Eu perco a luta e o senhor envia minha família para a o continente.
Aghori ficou novamente em silêncio e examinou no computador quem era a família de Marco.
– Os dois não dá. Consigo tirar o seu filho. Ele é pequeno e magro e dá para tirar daqui. – Aghori fez uma pausa e olhou atentamente para Marco. – Temos um acordo?
Marco pensou: "Ajude o garoto". Era isso ou nada.
– Sim, senhor. Temos um acordo.
Aghori pegou o seu discreto canivete e, fazendo um pequeno corte na palma da mão esquerda de ambos, cumprimentou Marco, selando o acordo.
– Juro pelo sangue de todos os lutadores que correm em minhas veias que seu filho estará no continente daqui sete dias.