
Otelo Overdrive
Parte 8
Treino após treino, Marco Aurélio se destacou em relação aos demais lutadores. A segunda luta fora contra Benvolio, que ele conhecera no jantar: fora difícil, mas ele também venceu. A terceira vitória veio duas semanas após a luta contra Benvolio devido uma lesão séria no rosto que precisou de tempo para desinchar. Contra Demétrio, Marco precisou de tempo e de muitos socos – seu adversário era mais resistente do que aparentava. Salvo de ser humilhado nos dois últimos fins de semana devido sua aparência desagradável aos clientes, Marco teve que aparecer no jantar e obedecer às ordens de Andressa, que havia lhe prometido a um amigo. O clister que ele recebera, achando que era um presente, foi chamado de "presente de grego" por Aghori, que riu de maneira comedida quando ouviu a história:
– Não posso lhe dizer que é algo comum isso acontecer, mas os clientes são excêntricos mesmo. Não há limites na imaginação para quem tem dinheiro.
Ao fim do jantar, o ritual de homenagem ao falecido servido como refeição se repetiu e começou a ganhar um sentido particular para Marco: da mesma maneira que as barras de proteína poderiam possibilitar algumas habilidades, a carne de um lutador deveria garantir para todos que a comesse habilidades melhores, mesmo que estas habilidades não tivessem salvado a vítima.
A raiva acumulada contra Andressa ganhava força antes dos treinos e era descontada no ringue, onde Marco lutou com mais intensidade. Aghori, percebendo a aptidão do lutador Otelo para direcionar o ódio, pediu para Próximo que adiantasse a sua transferência para as lutas de armas brancas. Próximo aceitou e o treinador começou a ensinar Marco a usar uma arma branca chamada florete. Marco ficou muito preocupado no início por que não era comum ter contato com objetos daquele tipo. Fora durante o jantar após a luta contra Tânato que ele tivera contato pela primeira vez com garfo e faca. As barras de proteína não exigem o uso de ferramentas para o consumo – até mesmo o trabalho na fazenda era feito exclusivamente com as mãos. O florete tinha um pequeno cabo para segurar. Ele deveria servir para aparar os golpes do adversário e tinha uma ponta afiada para estocar. A pergunta de Marco sobre a utilização da arma o deixou desesperado. Contudo, o contrato também previa esse tipo de situação e a explicação era simples:
– Você tem dinheiro para pagar sua dívida com a Financiadora? Creio que não, e nem tem expectativa de um novo emprego. Então, ou é você ou o seu adversário, mas você pode escolher.
Marco passou a ter muitos pesadelos depois do primeiro jantar e eles se intensificaram após o treino com florete. Ele sonhava com uma luta com um homem sem rosto que o estocava e, ao cair, era cercado por homens e mulheres velhos e bem vestidos que se banqueteavam com sua carne ainda fresca enquanto ele gritava. Noite após noite o sono era interrompido e o aproveitamento diminuiu. Quando Aghori ficou sabendo dos pesadelos, deu a Marco barras especiais após cada treino que o ajudava a não sonhar durante a noite. Marco acordava descansado para mais um dia de treino. O problema passou a ser recorrente apenas de dia, quando Marco Aurélio segurava o florete e pensava se conseguiria furar alguém em breve: A morte nunca foi uma parte do trabalho.
Após alguns dias treinando com a orientação de Atos, Marco passou a treinar usando como oponente um visor eletrônico e um braço mecânico com várias articulações. Na ponta do braço, um cabo de florete. O equipamento era uma tecnologia que ajudava os lutadores a treinarem com uma inteligência artificial aliada a uma realidade virtual e uma roupa especial que simularia contato com a arma do adversário. Enquanto o braço geraria a sensação de que o espadachim estaria segurando uma arma real, aparando golpes ou sendo aparado, sua roupa indicaria por meio de vibrações onde atingiria as estocadas do adversário em uma situação real.
Na primeira tentativa, Marco sentiu diretamente em seu peito o aviso da estocada do adversário virtual. Não foi a última estocada na altura do coração – cada estocada seguinte fora perto do lugar e teriam o levado a morte da mesma forma, só levando mais ou menos tempo. Marco ficou sozinho durante todas as horas do treino, recebendo orientações pelo visor de um instrutor virtual que indicava quais movimentos ele deveria fazer. Como o visor simulava razoavelmente a realidade, Marco não tinha problemas em tentar reproduzir as orientações dadas por meio de imagens e sons. A simulação era boa e tinha movimentos realistas, porém, havia algo de estranho na imagem. "Será que em uma luta real eu não conseguirei reagir por saber que meu adversário não é virtual?", pensou, durante uma pausa. Comparado a simulação das janelas virtuais do apartamento com a do treino, a segunda era perceptivelmente falsa.
Dia após dia, Marco Aurélio conseguia distanciar mais a estocada do adversário do seu coração, até o dia que conseguiu aparar todos os golpes. No último golpe do adversário ele quase foi atingido, mas fez um giro com o florete que abriu a guarda do oponente e o possibilitou atingir o pescoço. O boneco caiu ajoelhado em sinal de derrota e um relatório começou a detalhar os melhores movimentos e pontos mais vulneráveis de Marco: "A maioria está do lado direito", ele pensou após ler no relatório, mas não era novidade. Marco sabia por que tinha essa falha e como sua vida poderia ser mais fácil naquele momento se não tivesse sido uma criança idiota – nem o pai teria pago com a vida sua estupidez. Envergonhado, tentou afastar a memória ruim e voltou a treinar, atingindo resultados melhores.
A luta principal na sua estreia não foi com o invicto Cassio, o Sem Alma. O lutador havia sofrido um ferimento grave na semana anterior e ficaria afastado naquela noite. Marco recebeu uma barra especial para poder lutar com intensidade. A roupa que ele usava o incomodava: seu corpo suava muito e a roupa parecia piorar tudo. Queria tirar, mas era proibido, e ainda tinha um capacete totalmente fechado, o qual ele teria que enxergar por uma tela metálica que causava a sensação de aprisionamento. "Eu vou morrer, eu vou morrer", pensava, enquanto respirava intensamente.
Quando Próximo autorizou a luta, Marco avançou contra Mercúcio, seu adversário, com virulência: os golpes eram alternados entre os que ele treinara e movimentos erráticos. Alguns movimentos quase o levaram ao fio da lâmina do adversário, mas seus movimentos conseguiam afastar a morte certa. Com ódio de tudo e de todos, de Próximo a Andressa, Marco avançou contra o seu oponente, fez um movimento em espiral com seu florete contra o do oponente e o jogou de lado, abrindo um pequeno espaço entre o capacete e a clavícula. Não pensou duas vezes e deu uma precisa estocada ao lado da traqueia, acertando uma artéria. Com um movimento intenso de fúria e grito, puxou o florete para o lado, rasgando parte do pescoço de Mercúcio e arremessando seu capacete longe. Parado, Marco viu o homem a sua frente cair devagar até o chão, com um olhar assustado e estático, um olhar que lembrava Flavio, seu filho, quando o mesmo quebrou o braço semanas antes. A memória de Flavio veio e, no mesmo instante, neutralizou toda a raiva que ele sentia de todos, como se o próprio filho estivesse ali, sagrando em jatos cada vez menos intensos e esvaindo toda a vida para sua roupa branca de luta.
Ignorando tudo que acontecia ao seu redor, Marco Aurélio caiu ajoelhado ao lado do adversário e tentou estacar o sangue que jorrava com intensidade. "Vai passar, filho, vai passar...", disse Marco, enquanto os borbotões de sangue diminuíam de intensidade e se espalhava pelo carpete onde ambos entraram com a consciência de que apenas um sairia. Apenas Aghori tinha certeza de que nenhum dos dois guerreiros que entraram naquela noite sairia de verdade dali: A visão da morte os transformaria para sempre.
Sem conseguir ouvir nada, Marco não percebeu quando a plateia gritava um uníssono "Otelo, Otelo!", e nem a plateia ouviu quando Marco, percebendo a morte de seu oponente, gritou de desespero, sentindo-se o homem mais desgraçado do mundo.
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"A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator
Que se pavoneia e se aflige sobre o palco –
Faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz.
É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria
E vazia de significado." - Macbeth, William Shakespeare.