
Otelo Overdrive
Parte 7
Marco Aurélio recebeu uma bela roupa para vestir e um roteiro sobre seu personagem. Não havia muitas informações: ele era um homem atormentado por ter matado sua esposa e, antes de ser morto pelo seu crime, foi salvo por Próximo para buscar remissão. Nem o seu nome e nem o da esposa eram iguais. Enquanto Marco se chamaria Otelo de Ébano, sua esposa era Desdêmona. Pensou se teria que pagar por estes novos nomes e se eram caros. O texto tentava explicar detalhadamente o personagem, mas eram muitas informações. Duas orientações finais diziam que, se não lembrasse de algo quando perguntado, respondesse "Desculpe, mas meu passado é muito triste e eu prefiro não ficar relembrando". Não era necessário decorar todo o roteiro por que, com afirmava o documento, "Em pouco tempo, as pessoas não terão mais interesse na história e começarão a falar sobre elas. Deixe-as falar e reproduza as feições de seu interlocutor". Assim, ele seria uma curiosidade por pouco tempo para precisar saber tudo.
Aghori o mandou subir para uma sala onde havia outros como ele, lutadores feridos, mas bem arrumados. Havia mulheres também, mas elas pareciam ter algo amortizando a aparência de seus ferimentos e usavam roupas muito diferentes do que as roupas usadas pelos demais. Alguém disse que eram vestidos, mas não fazia sentido para ele, pois entendia que todos estavam vestidos ali. Preferiu fazer o que sempre fazia quando não era questionado e ficou em silêncio. Pouco depois, Aghori deu uma última regra: "Digo isso aos novatos, principalmente. Caminhem calmamente pelo salão, comam o que lhe oferecerem, bebam o que lhe servirem, sejam atenciosos com os visitantes e respondam de acordo com o roteiro". Todos responderam em um uníssono "sim, senhor" e a porta se abriu.
Marco não sabia como se portar e priorizou a regra de caminhar devagar. Aproveitou para contemplar as estátuas e pinturas que haviam na sala e outros lutadores fizeram o mesmo. Os visitantes eram estranhos: Seus cabelos brancos e peles flácidas davam a impressão que eles estavam se desmanchando. Deveria ser um problema comum em quem tinha dinheiro e Marco pensou que não deveria ser bom ser rico se fosse para ficar daquela forma.
– Bela pintura, não acha? – Perguntou uma mulher de cabelos grisalhos à Marco Aurélio.
– Sim, senhora.
– Pode me chamar de Andressa. Qual é o seu nome?
– Mar... Otelo de Ébano, senhora, desculpe, Andressa.
– Que nome forte! Tal qual o Otelo de Shakespeare.
– Creio que sim, Andressa.
– Mas não poderia ser um nome mais sugestivo. Quem deu para você, seus pais?
– Creio que sim, Andressa.
– Você não é de falar muito, não é?
– Não sou importante para ter algo para dizer, Andressa.
– Pode falar menos meu nome, se quiser. Sente-se comigo. – A mulher puxou-lhe pela mão. – Conte-me sobre você e eu vou avaliar se tens algo importante a dizer ou não.
Sentados, Marco começou contando o roteiro que teve que decorar, monótono. Em pouco tempo, fora interrompido de maneira sutil, como as orientações diziam que ocorreria, e passou a ouvir toda a história que Andressa contava, mesmo sem entender a maioria das coisas. Quando ela sorria, ele sorria, e quando ela se entristecia, ele se entristecia junto – uma máquina mimética, reproduzindo tudo que via para causar o máximo de empatia na interlocutora, tal como estava nas orientações.
Ele comeu coisas que nunca comera na vida e bebeu coisas que nunca bebera. Após algum tempo ouvindo, sentiu-se estranho, com uma leve tontura e uma forte ereção que não conseguiu esconder. Andressa ficou muito sorridente com a situação e segurou Marco pelo braço. No mesmo instante, o seu braço brilhou e a pulseira da mulher também. Estava feito um acordo em que ela poderia usá-lo a noite toda como quisesse. Marco foi levado a uma sala e forçado a transar com Andressa pelo tempo que ela quisesse, mas sob as seguintes ordens: Não rasgasse a roupa dela, não desmanchasse seu penteado e nem marcasse sua pele com tapas ou apertões. Em meia hora, fora dispensado pela mulher e voltou ao salão com olhar perdido. Sabia que era sua função transar com Andressa, mas preferia não tê-lo feito. Se não fizesse, quebraria o contrato com Próximo e perderia o emprego.
Havia muitas cláusulas em seu contrato e ele não tinha como ter dito não a nenhuma delas, mesmo que as conhecesse antes de aceitá-las. Quando as obrigações pareciam impraticáveis, Aghori era o conselheiro: "Você prefere cumprir suas obrigações ou se tornar um lumpen?" ou "A liberdade é um fardo pesado demais e que os contratos de trabalho tiram da gente". Além disso, agradar os clientes era uma oportunidade única de ganhar presentes, aliás, receber presentes era obrigatório. Não se podia dizer "não" a quem desse um presente sob o risco de ofender um cliente de Próximo. Essa pressão em nome do emprego deixava todos cansados e infelizes.
– Acorda, Otelo. – Aghori pressionou o braço de Marco com força. – Você precisa estar atento para o jantar. Beba isso que vai te ajudar.
– Sim, senhor. – Marco pegou um copo e bebeu.
Alguns minutos depois, antes de Andressa voltar, ele estava mais agradável e se sentia mais feliz. Mesmo assim, a mulher o ignorou e foi conversar com outras mulheres, que falavam empolgadas sobre o que havia ocorrido pouco tempo antes. Andressa parecia se sentir superior às demais, como se tudo fosse normal para ela. Marco voltou a sua primeira posição de contemplação de uma pintura. Menos agradável agora, Andressa acenou para ele com um dedo, ordenando naquele gesto que ele se aproximasse.
– Sim, Andressa?
– Sente-se ao meu lado.
Marco a acompanhou até a mesa de jantar em outra sala e sentou um pouco antes da refeição ser servida. Próximo fez as honras de apresentar o menu do jantar.
– Boa noite a todos. Tenho a honra de apresentar que temos uma noite especial de alta gastronomia. De aperitivo, vocês tiveram rolinhos de massa folhada com linguiça. De entrada, teremos filé de Caliban com molho madeira e risoto de alho-poró.
Muitos gemidos de satisfação foram ouvidos pela mesa, exceto pelos lutadores que também estavam sentados e os que estavam de pé. Nem todos eram convidados à jantar e ficavam de pé em torno da mesa, em posição ereta, olhando para frente. Todos os visitantes comeram com muita satisfação. Os lutadores também comeram, mas fingiam gostar. Marco estava alienado à realidade por causa da bebida dada por Aghori e comeu sem pensar em nada além de "será esse o gosto real de churrasco?". A refeição durou cerca de meia hora entre garfadas e conversa, até Próximo anunciar o prato principal.
– Sei que muitos vem aqui com frequência e tiveram boas experiências que guardam no coração. Aqui é um lugar para vocês deixarem a vida estressante de pessoas ricas um pouco de lado e poderem se sentir mais livres. – Alguns riram do comentário. – Assim, quando tenho alguma iguaria para lhes oferecer, meu coração se enche de alegria. Ofereço a todos, humildemente, um dos pratos mais raros de nosso menu: vitela assada com batatas e alcachofra. Sirvam-se!
Novos gemidos de satisfação foram ouvidos. Os visitantes comeram tudo que estava na mesa, sem deixar para os lutadores, que não fizeram questão de pegar. Marco ficou parado, olhando e sorrindo em retribuição ao sorriso de Andressa.
Ao fim do jantar, todos voltaram ao salão principal. Os visitantes beberam e riram por muitas horas ainda, enquanto Andressa emprestava Marco para suas amigas se divertirem também. Ele fez tudo que elas mandaram e recebera um "obrigado" de uma delas no final. Na última vez, ao voltar, teve a sensação de que os lutadores eram tão inumanos quanto as estátuas e serviam para ornar o ambiente como elas. Essa sensação durou alguns segundos, até o momento que Andressa o chamou para ficar perto dela.
A noite de conversas acabou quando alguém disse que já era quatro horas da manhã e eles iriam embora. Próximo acompanhou todos por uma porta lateral e seus risos foram ouvidos por algum tempo, diminuindo e se afastando. Quando a porta fechou, o silêncio tomou conta da sala. Aghori se ajoelhou no meio da sala e os lutadores o acompanharam. Marco também imitou, mas não entendia o que estava acontecendo.
– Caliban, o Louco, nós te homenageamos guardando parte de ti em nós. Um lutador melhor nós seremos a partir de agora. Assim sempre será.
– Assim sempre será. – responderam os lutadores, em uníssono.
Todos se levantaram e começaram a sair na direção das salas de aquecimento. Marco abordou Aghori antes deles saírem.
– Senhor, eu não entendi o que aconteceu.
– Quanto menos você entender, melhor para você. Todos aqui foram curiosos e perguntaram demais. Agora pensam demais. Quer evitar o sofrimento? Não pergunte, não saiba, não pense.
– Sim, senhor.
Marco trocou de roupa e voltou para o apartamento. Ao chegar, Encontrou Arashanai acordada, terminando de se trocar para trabalhar.
– Marco, o que aconteceu com você? Quem estragou seu rosto?
– Não, Nai. Meu emprego novo é assim. Eles consertarão de graça... – fez uma pausa, olhando para a esposa, e continuou. – Eu não lembrava como você é linda.
– Linda? Do que você está falando? Aconteceu alguma coisa para você estar estranho? – Arashanai ficou preocupada.
– Acho que não. É que meu emprego tem algumas obrigações diferentes da fazenda... – ele fez uma pausa, com um olhar vidrado para sua esposa, até que lembrou de uma parte importante do jantar. – Hoje eles serviram carne de graça.
– Carne é alimento de gente muito rica, Marco. Tem certeza que era de graça? – Ela olhou no próprio bioimplante – Agora não posso lhe ouvir. Preciso trabalhar, mas deixe para mim um relatório sobre esse evento anotado no computador que eu lerei quando voltar.
Arashanai saiu e o deixou parado à porta. Marco foi tomar banho e ficou pensando debaixo d'água. Aos poucos, a bebida dada por Aghori perdeu o efeito intenso e possibilitou que ele refletisse sobre a noite que passara. Foi quando lembrou que o prato de entrada se chamava "filé de Caliban". Seus olhos se abriram e ele ficou negando em sua mente sua conclusão, enquanto seu estômago revirava.