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Otelo Overdrive

Parte 6

          Decisões tomadas e acordo estabelecido, Marco Aurélio voltou para casa, repleto de alegria e esperança. A passos largos, seguiu diretamente pelo caminho indicado pelo bioimplante. Os guardas nem se importaram com a presença dele, que caminhava como era esperado para um morador da Cidade. Em casa, as janelas simulavam um bosque com uma bela luz do luar. Marco puxou a única cadeira do apartamento e parou em frente janela virtual. Viu um pássaro voando sobre as árvores, o movimento das folhas e como luz e sombra interagiam naquele ambiente. Com um pouco mais de atenção, ele percebeu que existiam pequenos pontos esbranquiçados no céu. Ao contrário do que via no mundo real, o céu virtual não era totalmente preto, mas tinha nuances de azul. Era a primeira vez que ele parava para olhar todas as características que as imagens possuíam para serem contempladas para quem quisesse desperdiçar tempo. O céu da cidade não tinha aqueles pontos esbranquiçados. Pensou se, no passado, o céu fora assim antes do mundo se tornar o que era.
         Lembrou de uma palavra: Estrelas. Não lembrava mais do que o nome, mas lembrara do pai falando sobre elas. "No começo, quando as ruas não eram cheias de outdoors e a iluminação era amena, nós víamos as estrelas no céu.", dissera seu pai quando ele era criança, na mesma época que... ele suspirou e lembrou que foi na mesma época que o pai contraíra a dívida impagável por sua causa. Marco era a causa da dívida do pai e Flavio era causa da dívida de Marco. Pensou se não haveria um fim nisso, se Flavio, quando fosse pai, não teria o mesmo destino. Tentou ter esperança, ainda mais depois daquela noite em que a sorte virou e ele conseguiu um novo emprego, um que pagaria mais do que o de fiscal de qualidade. O problema era que ele nunca estudou para ser lutador. Até os catorze anos, sempre estudou ciências exatas e eletrônica, e nunca soube que alguém poderia estudar luta. A palavra, aliás, sempre tivera uma conotação negativa, algo que estava atrelado a ideologia dos lumpens, um grupo que "lutaria contra a ordem e a liberdade". Contudo, quando Próximo usou a palavra, Marco Aurélio não pensou sobre o que ela significava, mas sim no salário. Tentando entender tudo que acontecera, pensou se faria sentido imaginar um lumpen trabalhando de lutador: lumpens não trabalhavam, eram a escória. Sua mãe fora lumpen e, apesar de ter boas lembranças dela, sabia que ela havia fracassado na vida quando se jogou de um prédio e, ao chegar ao chão, conseguiu apenas torcer o pé. Desempregada e sem marido, começou a andar pelas ruas, pedindo ajuda. Por fim, fora expulsa da Cidade.
         Na manhã seguinte, após um sono breve, Marco se levantou, tomou banho, vestiu-se e saiu. Flavio parecia estar dormindo. Contudo, quando o pai saiu, o rapaz se levantou da cama e viu que havia uma anotação na tela do computador: "Eu te amo, meu filho. Pesquise sobre as estrelas. Marco". Constrangido pela ideia errada de que seu pai estava com raiva dele, Flavio foi até o estoque e comeu uma barra de proteína. Sentou-se na cadeira e pesquisou "Estrelas". Não havia informação para além da informação de que as estrelas eram corpos celestes de plasma e que o próprio Sol era uma, sendo o único relevante para os seres humanos dada sua proximidade e capacidade de gerar energia solar, fundamental para a existência da Cidade. Flavio ficou confuso com a orientação do pai. "Por que pesquisar algo inútil?", pensou o garoto. Logo depois, continuou a estudar.
         Marco Aurélio caminhou a passos largos até o prédio de Próximo para começar o seu trabalho. Parado a frente da porta, a mesma se abriu. Não havia ninguém na sala, o que fez Marco hesitar por um instante, mas entrou mesmo assim. Parado do lado de dentro, a porta se fechou e uma luz no chão acendeu, orientando-o a seguir por um caminho demarcado até uma outra porta. Ao se aproximar, a segunda porta também se abriu e ele entrou. Havia um corredor com portas ladeando os dois lados. A primeira era a que ele deveria entrar e ele assim fez. Havia equipamentos espalhados por todos os lados e que Marco nunca vira na vida. Ao seu lado, surgiu um homem alto e tão forte quanto ele, com uma aparência rude.
         – Marco Aurélio? Eu sou Aghori. Eu vou te treinar e você vai obedecer tudo que eu disser.
         – Sim, senhor.
         – Assim que é bom: dizer apenas "sim, senhor". Vamos começar.
         Ao contrário do que Marco Aurélio imaginava, ele ficou a manhã toda fazendo exercícios, algo que ele nunca fizera na vida. Alguns exercícios foram fáceis, outros foram torturantes. Correr na esteira foi um dos exercícios mais difíceis e causaram dores durante o resto da semana. Com uma olhada rápida ao seu redor ele percebeu que muitos que estavam ali, passando pelo mesmo treinamento, tinham pouco ou nenhum condicionamento físico. "Será que estavam aqui pelo mesmo motivo que eu?", pensou enquanto corria. Em casa, após os exercícios e um treino de luta com mãos limpas, Marco cumprimentou o filho, tomou banho e deitou. Os exercícios se repetiram diariamente até que, um dia, Aghori se sentou com Marco na mesa do seu escritório.
         – Amanhã você luta.
         – Sim senhor.
         – Está preparado?
         – Não sei, senhor.
         – Se o Próximo ou qualquer outra pessoa te perguntar, diga apenas que está preparado. As pessoas gostam de lutadores que tem certeza do que estão fazendo. Se você disser que não sabe, dará a impressão de amadorismo. Certo?
         – Senhor, eu não sei o que é amadorismo.
         – Vocês da Cidade sempre chegam meio burros aqui... Bem, quer dizer que você não é qualificado para o que está fazendo. Então, diga que está e dê um sorriso. Vou te perguntar de novo, você responde certo e dê um sorriso. – Aghori fez uma pausa. – Está preparado?
         – Sim, senhor. – Marco tentou dar um sorriso, mas foi um meio sorriso horroroso.
         – Esse sorriso está uma bosta. Você não sorri? – Marco ficou em silêncio, envergonhado. – Vamos tentar uma coisa. Quando for sorrir, pense em algo que te alegra. Certo?
         Marco parou por um tempo e pensou no que poderia fazê-lo sorrir. Um sorriso começou a se formar e Aghori aproveitou a deixa.
         – Está preparado?
         – Sim, senhor.
         – Diga com mais convicção. Está preparado?
         – Sim, senhor! – Marco respondeu com um sorriso intenso e convincente. A memória de Flavio dizendo "papai" pela primeira vez era forte.
         – Amanhã, Marco. Durma bem e chegue aqui às dezesseis horas. Será uma luta apenas, para começar. Pode ir e treine esse sorriso.
         – Obrigado, senhor.
         Antes de sair, Marco Aurélio olhou rapidamente para os demais homens que estavam treinando. "Quem seria o outro lutador?", Marco repassou os rostos em sua mente, imaginando quem ele teria que socar e como ele faria isso se nunca socou nada além de sacos de pancada, o teto-solo e a pêra. Socar coisas era bem diferente do que socar outras pessoas. "Se 'o corpo do homem é sua propriedade privada', ele pode colocá-la para ser agredida? 'A agressão sem motivo será retaliada', então temos motivo ao lutar?". As perguntas de Marco o assustavam, mas ele se agarrava na afirmação de que tudo era feito por meio de contrato.
         Em casa, Flavio estava no computador, vendo vídeos de seus amigos. Marco Aurélio entrou e abraçou o filho que ainda estava sentado e ficou vendo o que ele estava assistindo.
         – Pesquisou sobre as estrelas?
         – Sim, senhor. Li que o Sol é uma estrela e é muito importante para a Cidade.
         – Só isso? Não apareceu sobre as estrelas que aparecem à noite? Como as que aparecem na janela virtual?
         – Não, senhor.
         Marco Aurélio ficou em silêncio enquanto Flavio olhava para ele. Com dois tapinhas no ombro do filho, Marco encerrou a conversa e foi tomar banho. Pensou em ver como Arashanai estava, mas ao abrir a cápsula de sono poderia acordá-la. Enquanto tomava banho, começou a fazer algo que não era de hábito e nem era indicado: pensar. Pensou que fazia muito tempo que não a via e mal lembrava de seu rosto. Anos sem ver o rosto da esposa além da foto em seu ID, uma foto que era substituída a cada cinco anos e que já não deveria representá-la. Daqui alguns meses, não veria mais o filho e sua vida se resumiria a ver o rosto de Aghori, Próximo e Vigília. A moça causou um impacto em Marco, resgatando boas memórias de sua infância, do rosto de sua mãe quando ela brincava com ele. Era algo incomum, pois brincadeiras eram desperdício de tempo. "Será que haveria a foto de minha mãe ainda no sistema? Será que estava viva ainda?" Perguntas que nunca fizera em sua vida, perguntas que lhe causavam sofrimento.
         Marco Aurélio tentou dormir tanto quanto lhe foi possível. Antes das dezesseis horas, ele se despediu do filho e saiu. Caminhou com fome até o prédio por não saber se deveria comer antes da luta.
         – Até que você não é de todo burro. Coma essa barra especial para lutas. – Aghori pegou uma barra de seu estoque e entregou para Marco. – Hoje você apenas mostrará para todos quem é. Vamos testar um nome novo para você e, se tudo der certo, este será seu de agora em diante. Tudo que falarmos sobre você será passado depois para você decorar, caso precisemos apresentá-lo aos visitantes, e você assumirá o personagem, certo?
         – Eu não sei o que é personagem.
         – Vamos contar uma história falsa sobre você e que estará ligada ao seu nome novo. Você contará essa história como se fosse sua história de vida para todos que perguntarem.
         – Sim, senhor.
         Marco fora levado para o aquecimento enquanto tudo era preparado para sua primeira luta. As últimas orientações foram passadas. A intenção era derrubar o oponente com socos. Se segurasse o oponente para não precisar bater o apanhar, receberia choques cada vez mais intensos em suas pulseiras. Antes da luta, Próximo passou na sala de aquecimento de Marco para ver como ele estava.
         – Hoje será sua grande noite, Marco, eu tenho certeza. Está pronto?
         – Sim, senhor. – Marco respondeu, com um sorriso.
         – Isso mesmo que eu queria ver: Otimismo.
         Próximo saiu e deixou Marco. Durante a hora antes da luta, Marco sentiu começar a aumentar a sensação de perigo e de alerta, como se precisasse estar pronto para algum perigo iminente. A luz se acendeu no chão e o orientou a caminhar até o canto de um círculo demarcado no chão. Seus batimentos cardíacos estavam tão altos quanto em um dia de treino. Neste instante, Próximo entrou e se posicionou no centro do círculo e começou o seu discurso.
         – Boa noite senhoras e senhores da elite do continente. Eu, Próximo, estou aqui para abrir mais uma noite de diversão e barbárie para o vosso deleite. Temos, para o prazer de todos, ótimos lutadores e lutadoras para abrirem esta noite que tem, como prato principal, o vencedor do sábado anterior, Caliban, o Louco, em uma luta decisiva contra o vencedor invicto desta casa há muitas semanas, o nosso amado e belo Cassio, o Sem-Alma. Mas não temos apenas essa bela luta hoje. Para começar, temos duas grandes promessas para as lutas vindouras e que, acredito terem muito potencial. A minha direita, com seus um metro e setenta e cinco, rápido e letal como uma cascavel, temos Tânato, a Morte Branca!"
         Enquanto ouvia aplausos, um homem vestido como Marco se levantou e parou ao lado de Próximo, olhando para baixo. Era um dos homens mais fortes do grupo de treino de Aghori, mas não o melhor. Além da mesma roupa, o homem tinha as mesmas pulseiras.
         – E a minha esquerda, com seus um metro e oitenta e três, atormentado pela morte de sua esposa e buscando redenção pela luta, temos Otelo de Ébano!
         A cadeira onde ele estava sentado se moveu e o obrigou a se levantar. Enquanto ouvia os aplausos, Marco caminhou até o centro do círculo e se posicionou do lado oposto ao de Tânato. Próximo levantou o braço dos dois lutadores ao mesmo tempo para o último aplauso e saiu.
         A luta era sem luvas e durou cerca de seis minutos, sob gritos e aplausos. Tânato era realmente mais rápido e conseguiu desferir alguns socos em Marco. Porém, quando Marco conseguiu pegar o braço de seu adversário, o puxou em sua direção e desferiu um soco atrás do outro. O som era abafado e acompanhando de pequenos sopros de ar de Tânato. No terceiro, o homem olhou o vazio e se ajoelhou no chão. Marco deu seu último soco na têmpora do seu adversário que caiu, inconsciente. A plateia começou a gritar seu nome e o aplaudir com vigor. A sensação de triunfo pulsava em seu âmago como o próprio coração e Marco levantou os braços, orgulhoso de sua vitória.
         Marco foi levado de volta para a sala de aquecimento e ficou lá, deitado. Sua mente ainda estava muito agitada e ele não conseguia manter-se parado. Quando Próximo apareceu, ele se levantou automaticamente e se posicionou como se esperasse novas ordens.
         – Que luta, Marco, que luta! Eu sabia que você ia ganhar, mas gostei do final dela.
         – Sabia?
         – Claro que sim. Todos os lutadores têm um perfil feito durante o treino. Eu já sei com um percentual bem expressivo de quem sairá vitorioso e quem sairá derrotado. Neste caso, era quase como chutar cachorro morto.
         – Eu não sei o que é um cachorro, senhor.
         – Ah, é. Então, era o mesmo que lutar com um cadáver.
         – Um cadáver luta, senhor?
         – Não, e é por não lutar... por acaso você não sabe como é um cadáver?
         – Não senhor, eu nunca vi um cadáver.
         – Se tudo der certo, você verá, em breve. – Próximo fez uma pausa – Bem, arrume-se! Hoje teremos um bom jantar.

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