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Otelo Overdrive

Parte 5

          As ruas da Cidade estavam sempre iluminadas. Dia ou noite, chuva ou sol, sempre estavam iluminadas. Os grandes outdoors sempre estavam passando propagandas, anúncios que Marco Aurélio não prestava atenção. Ao seu lado, havia uma máquina que vendia barras de proteína. Ele sempre escolhia as mesmas à noite, com sabor de churrasco. Lembrou que seu pai lhe dissera que churrasco era uma forma de preparar carne, usando madeira queimada ou resistência elétrica. Contudo, Marco só tinha como referência para o sabor de churrasco aquela barra. Quando a máquina liberou sua refeição, seu bioimplante acendeu com o aviso: "compra de barra de proteína. Desconto de 1 crédito". Marco a comeu enquanto caminhava pela rua.
         As poucas pessoas que estavam na rua naquele momento eram da guarda privada. Eles estavam acostumados a verem pessoas caminhando com pressa para todos os lados, mesmo quando não estavam atrasados para irem trabalhar. Então, ao verem Marco caminhando devagar pela calçada, o vigiaram com mais atenção. Marco Aurélio caminhava olhando os outdoors, ainda anestesiado com a notícia da demissão, olhando tudo que havia de novo no mercado e ele não poderia comprar. Ao pensar com mais clareza, apenas a roupa de seu corpo fora comprada pelo valor real. Todo o resto – bioimplante, a casa, o computador – eram alugados ou tiveram um abatimento muito alto e com substituição garantida. Ele sabia que os abatimentos vieram por causa dos contratos, em que tudo que ele fazia era automaticamente registrado, convertido em informações que eram enviados para a Lime Data. Ele nunca entendera para que serviria essas informações para uma empresa de tecnologia, mas não se importava. Tinha certeza que uma empresa que nunca se envolvera em um crime noticiado poderia fazer algo de errado.
         Após algum tempo caminhando, sem rumo, ele ultrapassou o espaço conhecido da Cidade. "Será que conseguirei voltar para casa?", comentou em voz baixa. No mesmo instante, o bioimplante acendeu: "geolocalização ativada: você está há trinta minutos de distância de casa.". Marco ficou aliviado em saber que seu bioimplante tinha esta função e poderia indicar caminho de volta. Continuou caminhando até ouvir um som estranho vindo do céu. Ele olhou para cima e viu uma luz se movimentando acima de um prédio sem painéis iluminados e sem uma fachada imponente. Curioso, seguiu em direção às luzes até parar na frente da porta da construção. Da calçada em frente, Marco viu que a porta de metal polido começava a brilhar até formar uma imagem: seu próprio rosto. A situação inusitada o fez ficar por mais tempo a examinando.
         A estranha porta com a imagem de seu rosto não tinha batente e nem leitor biométrico. Em cima do batente da porta, havia um pequeno ponto que parecia uma câmera, o que explicaria como seu rosto era projetado na porta, mas não explicava por que era a mesma imagem de seu cadastro na Lime Data. Pensou que deveria ser o prédio da empresa e já ia se virando para continuar seu passeio noturno. Porém, antes que pudesse fazer algo, a porta se abriu e uma mulher jovem acenou para ele. Marco olhou para os lados e viu que estava sozinho, exceto pelos guardas, alguns metros de distância dali. Ao voltar seus olhos para ela, a mulher acenou de novo, positivamente, e o chamou com a mão. Sem entender o que acontecia, Marco caminhou até ela.
         – Você é o Marco Aurélio, certo? – perguntou a mulher, sorrindo. – Meu pai gostaria de falar com o senhor. Posso dizer que está aqui?
         – Seu pai...? Não sei. Quem é o seu pai?
         – Você não o conhece, ele se chama Próximo. Aliás, meu nome é Vigília. – A mulher puxou Marco pelo braço e o colocou em uma poltrona. – Eu vou chamá-lo. Aguarde aqui, okay? Enquanto você espera, eu vou pegar uma caipirinha, tá bom?
         – Uma caipirinha...? O que...
         – Ah, é! Então eu vou pegar um suco, algo mais leve. Acho que você vai gostar de um suco de limão.
         Marco ficou parado, olhando Vigília se afastar. Enquanto esperava, olhou com atenção a sala, tão grande quanto o local onde ele trabalhou por duas décadas. A diferença era que tudo ali era agradável aos olhos: as estátuas, quadros e uma planta, algo que ele só tinha visto na janela virtual. Com medo, preferiu não examinar a planta de perto, preferindo ficar totalmente imóvel. Olhou todas as coisas ao seu redor, mesmo com a pouca claridade daquele lugar agradável e tranquilo.
         Menos de cinco minutos depois, Vigília apareceu com uma bandeja. Havia um jarro de vidro com dois copos. Ela colocou a bandeja em uma mesinha próxima as poltronas e serviu Marco. Eram muitas coisas novas em poucos minutos que Marco não conhecia, mas que, ao mesmo tempo, não se sentia confortável para perguntar.
         – Tome. Beba quanto quiser, e não se sinta obrigado a beber tudo, certo? Meu pai já vem.
         Marco assentiu. Vigília sorriu e saiu da sala. Mais alguns minutos depois, um homem de cabelos brancos e rosto enrugado entrou na sala. Ele vestia roupas que Marco nunca vira na sua vida. Era um terno bem cortado e sapatos brilhantes. Marco ficou admirado com o homem e, ao mesmo tempo, envergonhado. O tal Próximo deveria ser importante dadas suas características únicas: era a primeira pessoa com cabelos brancos e pele flácida que ele havia visto na vida. Se sua aparência fosse sinal de algum tipo de doença, ele era um homem muito rico para não precisar trabalhar para alguém.
         – Marco Aurélio, Marco Aurélio! Estou em frente a um imperador? – bradou Próximo, sorrindo e, por fim, fazendo uma pequena pausa.
         Marco, visivelmente confuso, se levantou e ficou olhando para o anfitrião. Ficou calado, sem saber o que dizer.
         – Estou brincando. Imagino que você não saiba o que é um imperador, mas não faz mal. O importante aqui é você.
         – Eu...? Importante? Eu não sou... – Marco olhou para a mão de Próximo que lhe dava tapinhas no ombro esquerdo.
         – Não precisa ser humilde, Marco. Aqui você é a estrela. Olha esse porte, esses braços. Um homem de seu tamanho chama a atenção. Deduzo que você não trabalhe em escritório, certo?
         – Deduzo...? Não, senhor. Eu trabalhava no setor de qualidade de blattarias.
         – Ah, sim... – Próximo deu um sorriso desdenhoso. – Um empurrador de caixas. Já trabalhei com pessoas do seu tipo, mas nunca tão fortes. – o homem apertou o braço de Marco, conferindo se havia rigidez em sua musculatura.
         – O senhor é dono das fazendas? Eu posso voltar a trabalhar lá?
         – Melhor que isso, Marco! Comigo, você terá uma oportunidade de vida inimaginável. Muitos que perdem o emprego não chegam até aqui, enquanto você... Como eu estou feliz de te encontrar. Bem, vamos ao que interessa. Eu te proponho um emprego que trabalha pouco e ganha muito dinheiro. O que acha?
         – Um emprego que trabalha pouco e ganha muito? – Marco não conseguia imaginar o que queria dizer aquela proposta. Não sabia o que era trabalhar pouco.
         – É isso mesmo. Trabalha pouco e ganha muito. Uma oportunidade de ouro.
         Marco ficou em silêncio, olhando para Próximo. Não sabia o que pensar e nem o que dizer. As palavras de Próximo eram desconhecidas e dificultavam o entendimento. Ele também não entendia o que queria dizer "oportunidade de ouro" – sabia o que era ouro, mas não entendia como um metal usado em equipamentos eletrônicos seria uma oportunidade.
         – Sente-se, Marco. Beba o suco. Se o gelo derreter, vai ficar aguado.
         Próximo se serviu de um copo do suco e se sentou, seguido de Marco.
         – Adoro limonada. E você? – falou Próximo, após beber um gole na bebida e fazer um estalo de prazer com a boca.
         Marco encheu a boca com a bebida e, no mesmo instante, sentiu a ardência do ácido do suco do açúcar de cana, sensações que nunca sentira na vida. Seus olhos lacrimejaram, mas ele engoliu.
         – Eu acho que sim, senhor.
         – Não precisa mentir. Eu sei que você nunca bebeu um suco na vida, mas te garanto que, se aceitar minha proposta, terá coisas mais gostosas para beber e comer, sem custo. Bem, em relação ao emprego, além do salário de trezentos créditos por semana, pago também uma bonificação por resultados.
         Marco ficou espantando. Só o salário era maior que o que ele recebia por semana na fábrica.
         – Senhor... O que é bonificação?
         – É um valor que você recebe quando vai bem no trabalho.
         – E eu tenho que trabalhar em quê?
         – Como lutador. Mas não se preocupe, tudo é feito mediante contrato. E cada evento que você vencer, recebe trinta por cento.
         – E o senhor recebe os setenta por cento quando eu venço?
         – Ah, sim. – Próximo sorriu, malicioso. – Eu sempre recebo setenta por cento... Aceita?
         Marco parou por alguns segundos e pensou que não havia oportunidade melhor. Não sabia quando apareceria outro emprego e havia ainda a chance de ganhar mais do que o salário que ele estava acostumado. A dívida com a Financiadora poderia ser paga antes do tempo esperado. Marco estendeu sua mão e selou o acordo com Próximo.

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