
Otelo Overdrive
Parte 4
Na manhã seguinte, enquanto se arrumava para ir ao trabalho e Flavio ainda dormia, Marco Aurelio viu a mensagem em seu bioimplante, enviada durante a madrugada, de que houve um risco de invasão na rede de sua casa. Ele olhou por alguns segundos o bioimplante, suspirou e terminou de se arrumar. Enquanto caminhava para o trabalho, pensou enraivecido no que Flavio deveria ter feito desta vez. O garoto ainda tinha doze anos e havia dois anos ainda antes da emancipação, porém, se ele continuasse fazendo coisas estúpidas, poderia não chegar vivo aos catorze. Refletindo com aquilo que lembrava de seu próprio passado, parecia que havia ao menos uma época de revezes na vida de cada pessoa na Cidade que ele conhecera. Poderia ser esta a época de Flavio, enquanto ele era criança ainda, e a vida a partir dali poderia se tornar mais fácil.
Os pais de Marco e, até onde se lembrava, os de Arashanai, não tiveram vidas fáceis. Três deles se tornaram lumpens e foram expulsos, enquanto seu próprio pai contraíra uma dívida impagável com a Financiadora Fragger. A dívida fora liquidada sem alarde. Um dia, Marco estava trabalhando na fábrica e recebeu a notificação que de a dívida de Antônio, seu pai, não existia mais. Não houve velório, nem nada, restando apenas um sentimento de culpa em Marco que só era esquecido quando ele trabalhava ("Não pense nos problemas, trabalhe"). Ninguém era enterrado na Cidade. A morte era algo que a maioria não encarava – alguns morriam sem ter visto um único cadáver na vida. Os natimortos e as mulheres que morriam em partos eram enviados diretamente para a Fragger Alimentos Especiais. Era comum homens que tinham perdido suas esposas durante o parto venderem os bebês para a própria clínica por crerem que não seria possível criá-los sozinhos. Se fossem considerados bonitos, eram vendidos para pessoas mais abastadas que não tinham filhos, mas os outros...
Marco afastou todos os pensamentos de sua mente quando viu o grande painel de avisos que lembrava aos funcionários de coisas importantes, como deixar os problemas do lado de fora e focar-se no trabalho. A mente vazia funcionava melhor e garantia a renda sem descontos no fim do dia. Quem cometesse um erro e quebrasse algo, tinha que pagar, e a dívida não era paga com saldo de horas que todos tinham. Muito erros levavam à demissão, porém, até alguns acertos poderiam ser uma sentença de morte. O dia fora muito cansativo para Marco e ele não cometeu um erro sequer, como em todos os outros dias, empurrando caixas e analisando o crescimento das blattarias por meio do scanner. Ao fim do dia, quando as caixas de crescimento estavam arrumadas em seus lugares e as demais já estavam no ponto de extração, o homem ia saindo de seu posto para o próximo funcionário o render. Contudo, não só ninguém veio assumir a função como o seu bioimplante acendeu em uma alternância de linhas de várias cores. Por fim, escrito em letras maiúsculas, apareceu o aviso que era o pesadelo de qualquer pessoa: "Último salário depositado: 40 créditos. Contrato cancelado."
Uma mistura de incredulidade e pavor tomou seu corpo. Ele ficou parado no corredor, olhando para o aviso. Como não reagia, apareceu outro aviso: "Área privada. Você não tem autorização para permanecer no local. Saia agora.". Andando sem conseguir pensar em nada, Marco Aurelio caminhou até a saída do prédio e alcançou a rua. Caminhou pela calçada sem pensar em nada, olhando para o bioimplante apagado onde alguns minutos antes estava escrito "contrato cancelado". Após vários minutos andando sem olhar para o caminho, Marco voltou a si e parou. Olhou para os lados e viu o céu escuro. Era noite. Há muitos meses que não olhava para o céu. Normalmente estava muito cansado para olhar qualquer coisa que não o caminho intensamente iluminado com outdoors e luzes artificiais que o levava de volta para casa. Porém, a consciência de que não tinha mais emprego ativou seus instintos de sobrevivência. A dívida, sua esposa e seu filho se alternavam em sua mente: "O que acontecerá comigo? Não conseguirei outro emprego? O que eu fiz de errado para perder o emprego? Como eu vou falar isso para a Nai? E o meu filho, o que vai acontecer com ele?" Até mesmo o pouco de raiva que sobrara do filho desapareceu. Eram muitas perguntas e que ele não tinha a mínima noção de como conseguir as respostas. "'Não pense nos problemas, trabalhe', mas trabalhar aonde? No quê?".
Sentindo um vazio no peito, ele chorou pela terceira vez em sua vida. A primeira, quando Flavio nasceu; a segunda, quando Flavio quebrou o braço. Ele não encontrava Arashanai há meses, sempre em turnos que inviabilizava os dois estarem em casa acordados ao mesmo tempo, restando se comunicar com ela por meio de mensagens nos bioimplantes. Porém, Flavio ele via com frequência – era Marco Aurélio que estava em casa quando Flavio apareceu segurando o braço e encarando o pai com um olhar desesperado.
Ao voltar para casa, Marco Aurélio entrou sem dizer palavra alguma. Todos estavam dormindo. Arashanai acordaria dali algumas horas para ir trabalhar na Fragger Protein – ele sabia que a maioria das pessoas trabalhavam em algum setor de alguma das empresas do conglomerado. Ele entrou em silêncio e sentou-se no computador. A tela acendeu e o nome "Lime Data" apareceu escrito em um tom de verde no centro da tela com fundo branco. Ao lado do logotipo, havia a logomarca da empresa, também verde e que para ele parecia uma roda. Marco nunca vira uma lima na sua vida e não sabia que aquilo era o desenho de uma fruta. Ele selecionou a função de pesquisa e colocou a palavra "emprego". Apenas uma única resposta apareceu na tela.
"Boa noite, Senhor Marco Aurélio. Gostaríamos de lhe informar que, no momento, não temos vagas para pessoas com o seu perfil profissional. Se tiver interesse, selecione a função 'Avise-me quando houver uma vaga' que lhe avisaremos diretamente em seu bioimplante. A Lime Data agradece sua atenção e espera sua compreensão."
A resposta recebida o deixou mais preocupado. Aquela noite, Marco decidiu não se deitar para dormir. Precisaria de tempo para que a tempestade de perguntas passasse e o cansaço ganhasse força para ele ter um sono profundo. Para aquela noite, caminharia pelas calçadas da Cidade para esvaziar a mente, apesar da noite ser longa para mentes desesperadas.