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Otelo Overdrive

Parte 3

          Marco Aurélio manteve sua rotina diária de doze horas na fazenda de blattarias. Além das análises feitas para manter a maturação dos animais dentro das caixas de crescimento, Marco precisava transportar até o ponto de extração as caixas que não estivessem fazendo a função autonomamente. Após quase vinte anos trabalhando na fazenda, esse problema era recorrente, aliás, passou a ser a regra no funcionamento das caixas. Ninguém perguntava o porquê desde que o último curioso perdeu o emprego. "Não pense nos problemas, trabalhe" era uma frase recorrente nos corredores, e era isso que todos faziam, garantindo a renda no fim de cada dia. Com a tecnologia avançada e a leitura dos bioimplantes, as empresas sabiam quem estava trabalhando e a que horas entrou e saiu. Excluindo o tempo que ia para o banco de horas, o salário era depositado na conta diariamente. Sendo assim, não havia justificativa para faltar: não trabalhou, não recebia.
         Enquanto Marco e Arashanai trabalhavam, Flavio foi à clínica começar seu tratamento. Por ter apenas doze anos, Marco tinha autorizado o tratamento remotamente. Com uma microcirurgia, o médico posicionou e reforçou as duas partes do osso fraturado. A cicatrização demoraria ainda dez semanas. Enquanto aguardava para retirar o exoesqueleto do braço, o médico receberia o relatório diário enviado pelo próprio equipamento, com exames de sangue e análises pontuais sobre o local da fratura. Por ter autorizado o uso comercial dos dados coletados pelo médico, Marco conseguira um grande desconto no custo do tratamento. Em menos de duas horas, Flavio estava liberado para continuar suas tarefas. Enquanto caminhava pelas ruas entre a clínica e seu apartamento, contemplou a grande quantidade de anúncios em imensos outdoors digitais espalhados em todos os lugares. Os anúncios eram sobre a importância das empresas Fragger, os novos modelos de computadores, bioimplantes, apartamentos funcionais e roupas.
         As mudanças tecnológicas eram constantes, inclusive nos sabores das barras de proteínas: sabores sintéticos de todos os tipos, oferecendo uma imensa gama de possibilidades para a mesma comida, a única comida que ele conhecia. Seu pai ouvira de seu avô que o primeiro alimento a deixar de ser vendido fora a carne. Anos depois, os vegetais ficaram muito caros. As notícias eram sobre uma crise global que eliminou a produção de alimentos agrícolas, mas a Fragger Protein salvou a todos ao oferecer um produto acessível e completo: as barras de proteína. Ao contrário do que acontecia com a venda de alimentos no passado, nunca havia prejuízo com a venda das barras. Sendo o único alimento, todos compravam, e sendo produzido com a tecnologia mais avançada possível, tinha uma validade maior do que o tempo que ficava nos armazéns para a venda.
         Flavio entrou no prédio e subiu para o apartamento. As lâmpadas e as janelas virtuais se acenderam antes dele entrar. Pela falta de espaço, não existiam janelas reais, bem como não existia nada de interessante na cidade para se ver por uma janela. As janelas virtuais simulavam um campo com árvores e animais que já não existiam e a luz era agradável como a luz do Sol. Flavio não contemplava muito as imagens das janelas, preferindo ver vídeos de pessoas de sua idade que falavam sobre o dia a dia, desafios perigosos que poderiam estragá-los ou vídeos de novos produtos – de aparelhos eletrônicos a roupas. Não existia muito mais a ser visto na internet por que as pessoas como ele não tinham dinheiro para produzir vídeos mais elaborados. Os filmes tinham valores mais acessíveis, como o último que fora feito totalmente em computação gráfica sobre o último grande ataque de rebeldes antiliberais. A história falava de como eles cresceram em famílias de lumpens que não aceitavam não ter um governo que os alimentasse de graça. No fim da história, a guarda privada da cidade neutralizou os rebeldes e foi condecorada pela bravura ante o risco de morrer para defender desconhecidos.
         Os únicos que usavam diariamente o computador eram os jovens como Flavio. Seus pais não tinham tempo de fazer nada além de trabalhar e era comum a ideia de incentivar os filhos a deixarem o uso excessivo de internet de lado antes dos catorze anos, um ato chamado de desplugue. Alguns lumpens eram viciados em internet e não conseguiam largar o vício. Por serem emancipados, não podiam ser vendidos pelos pais e acabavam sendo expulsos da cidade. Não existiam moradores de rua porque não existiam lugares públicos para morar. Quem não tivesse emprego, não alugava um imóvel, e quem não tinha onde morar, não morava na cidade. A família de Flavio estava na cidade desde o início da Nova Era. O seu último avô falecera quando ele era muito pequeno e sua família se resumia naquele momento a dois tios, duas tias e três primos. De todos eles, Flavio só tinha contato com um primo que tinha a mesma idade que ele, enquanto o resto da família trabalhava todos os dias. As conversas se resumiam em falar de vídeos assistidos e novas tecnologias que eles conheciam, mas não tinham dinheiro para comprar.
         Enquanto estava sentado na frente do computador, Flavio viu seu pai entrando com o olhar abatido de sempre. O homem o abraçou, perguntou como foi o dia, tomou banho e foi dormir. Apesar do aparente afastamento entre eles, as relações eram daquela forma em todas as famílias. No seu caso, os pais estavam mais preocupados em garantir o tratamento de sua fratura do que as próprias necessidades. Enquanto a maioria dos jovens que tinham danos como ele eram descartados – dado o custo para o conserto – Flavio estava recebendo um tratamento que ele sabia que seus pais teriam muita dificuldade em pagar. Na sua cabeça adolescente, pequenos lampejos de ideias sem base e sem referências o incomodavam e substituíram seu pensamento de crescer logo para poder ajudar nas despesas da família: "Será que todos os seres humanos vivem desta forma? Se as outras democracias foram destruídas, as outras cidades vivem como nós?" Ao fazer uma pesquisa na internet querendo saber como eram as outras cidades ao redor do mundo, o seu computador começou a apresentar falhas e um aviso de vírus apareceu na tela. Flavio, assustado, ficou olhando o aparelho reiniciar e aparecer na tela um aviso da própria rede:

"Boa noite. Evite pesquisas inúteis. Elas podem criar backdoors para hackers invadirem sua rede pessoal e bioimplantes. A Lime Data agradece sua atenção e espera sua compreensão."

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