
Otelo Overdrive
Parte 2
O conglomerado Fragger era conhecido por todos por possuir braços em vários setores onde o seu nome era utilizado à exaustão. Ele lucrava de várias formas: ou por meio dos empréstimos ou pelas propriedades privadas beneficiadas. Em um primeiro momento, as propriedades eram enviadas para a Fragger Alimentos Especiais. As partes menos nobres e os ossos eram desidratados, triturados e enviados para servirem de ração nas fazendas de blattarias ou serem convertidos em matéria prima dos alimentos proteícos em sua divisão chamada Fragger Protein. A maioria da matéria-prima desses alimentos consumidos pela população vinha dessas fazendas. Quando o custo de produção da carne ficou alto demais, somente os bilionários conseguiam manter uma criação de bois, porcos ou aves. Na dieta dos mais pobres, havia somente a proteína de blattarias com suplementos. A água era reaproveitada da rede de esgoto e de rios subterrâneos.
Marco andou pela calçada sentindo-se exausto. Aquele empréstimo consumira sua mente desesperada e fadigou todos os músculos de seu corpo. Tão cansado como se tivesse trabalhado um dia inteiro, ele precisou voltar para casa e dormir antes de voltar para a fábrica. A maioria das pessoas empregadas trabalhavam de dez a doze horas todos os dias, inclusive aos domingos. A maioria das pessoas nunca ouvira falar de domingo como dia de folga, principalmente por que a palavra "folga" tinha uma conotação muito negativa. Folgar significava não trabalhar, algo malvisto por patrões e um motivo para despedir funcionários que não se dedicavam tanto quanto os outros. Uma das várias ideias repetidas a exaustão, como a ideia de todos eram livres, era a ideia que "somente lumpens são folgados" e ninguém queria ser comparado a um lumpen.
Após algumas poucas horas de sono, Marco acordou e encontrou seu filho estudando no computador. Ir para a escola era algo que não existia mais. Escolas eram caras e os computadores davam conta de oferecer todo o conteúdo disponível e necessário: algumas áreas de conhecimento estavam extintas e as empresas ofereciam na internet apenas aquelas que garantiriam a formação básica para uma pessoa poder trabalhar. Desta forma, os jovens engrossavam as fileiras de trabalhadores aos catorze anos - exceto os mais ricos, que começavam após os vinte e um anos. Ao começarem a trabalhar, alguns desses jovens mudavam de setor para morarem perto dos seus empregos em quartos funcionais de um metro de largura por dois de comprimento. Fogão, geladeira e mesa eram coisas do passado, pois a maioria das pessoas comia o alimento produzido pela Fragger Protein. A casa que Marco alugava com sua esposa era um pouco maior: tinha três de largura por três de comprimento. Àquela hora do dia, Arashanai, esposa de Marco, estava trabalhando. Ao contrário de Marco, ela nascera em uma família pobre que não tivera condições de alugar um nome patenteado. Os pais acabaram por registrá-la com uma palavra qualquer. Anos depois, casada e empregada, poderia mudar para um nome melhor, mas preferiu mantê-lo. Todos a conheciam por aquele nome e ela preferia deixar assim.
Marco foi até Flavio e o abraçou de lado com o braço esquerdo, mas não disse nada sobre a dívida. Ele sabia que o garoto estava constrangido pelo problema causado para a família e que poderia ter recebido o mesmo fim que alguns colegas da rede social que foram vendidos para a Fragger Alimentos Especiais. A vida de uma criança era tão dura quanto de um adulto: brincar era perigoso e considerado um desperdício de tempo. Além do mais, uma brincadeira que causasse uma lesão como a fratura de Flavio era resolvida da maneira mais fácil - enquanto a criança não se emancipasse, era propriedade dos pais e estes poderiam vendê-la.
Na empresa, Marco tentou convencer o seu supervisor a comprar as horas que ele guardava no banco de horas. A promessa que todos os funcionários recebiam era que, quando a empresa conseguisse lucrar, as horas seriam compradas com valores corrigidos, quem sabe até com um adicional. Sonhando com o cumprimento dessa promessa, Marco acumulara mais de três mil horas desde que começara a trabalhar. Infelizmente ele não poderia esperar o grande dia para vender as três mil horas e ter uma pequena fortuna. Insistindo com Orestes, seu supervisor, Marco explicou que as horas fossem compradas para ele tentar diminuir a dívida com a Financiadora. Percebendo o desespero do funcionário, Orestes ofereceu um terço do valor das horas. "Oferta e demanda, Marco", disse o homem. No fim, Marco aceitou a venda e, com um cumprimento de mão, viu um saldo de dez mil a mais em sua conta acender em seu braço.
Marco não ficou feliz com a venda, mas tentou ser o mais produtivo possível, como sempre fazia. Era respeitado por Orestes por nunca reclamar e nunca pedir nada. Trabalhou quantas horas fossem necessárias pela empresa e, no ano anterior, até contribuíra com o aperfeiçoamento do scanner que avaliava a qualidade do ambiente para as blattarias. Claro que, como os outros funcionários antes dele, não ganhou nada além de respeito, pois era política da empresa que tecnologias criadas na fábrica eram de propriedade dela e o aperfeiçoamento fora feito em um scanner da empresa. De vez em quando, Orestes passava sondando Marco para saber se ele não tinha inventado nada novo, mas com tantas horas extras feitas todos os dias, o homem mal tinha tempo para ver a esposa e o filho. Marco tinha certeza que Orestes havia ganhado alguma coisa com o aperfeiçoamento do scanner, mas preferiu nunca o confrontar. O emprego era mais importante que o orgulho.