
Otelo Overdrive
Parte 1
Desde que o mundo deixou suas velhas estruturas, a mídia passou a receber grandes investimentos para divulgar amplamente que finalmente o futuro chegara, no qual todos poderiam saborear a real liberdade tão enaltecida pelos economistas do século vinte. As grandes empresas fizeram de tudo para que o passado ficasse relegado às poucas pessoas que ainda lembravam dele, investindo pequenas fortunas para destruir toda forma de arte que pudesse, de alguma maneira, fazer menção ao passado. Os livros de história eram considerados ideologias antilibertárias. Os cinquenta anos desta nova era fora denominado de "jubileu de ouro dos homens livres" e o próprio calendário começara de novo – todos diziam que aquele ano era o quinquagésimo primeiro. Os países se tornaram meras formalidades governadas por conselhos administrativos e a democracia fora banida. As guerras também foram banidas, porém, pequenas rebeliões ainda aconteciam. Respeitando o princípio da não agressão, todos os rebeldes eram sumariamente eliminados e suas propriedades eram usadas para ressarcir os prejuízos que as empresas ou pessoas sofriam. As pessoas podiam reivindicar ressarcimento, mas os peritos particulares que comprovavam tal direito eram mais caros que a indenização em si e a maioria não conseguia pagar.
Em um tempo de liberdade irrestrita, a única coisa que diferenciava todos os seres humanos era o dinheiro. Quem tinha mais dinheiro coincidentemente conseguia garantir um futuro agradável para os filhos. Aos pobres, havia somente a liberdade de poderem tentar prosperar pelo suor de seus rostos. Marco Aurélio, fiscal de qualidade de uma fazenda de blattarias, vinha tentando essa façanha, mas falhara quando Flavio, seu filho, sofrera um acidente. A pequena poupança do homem, acumulada por anos para tentar melhorar a vida de sua família, fora usada completamente para pagar o atendimento emergencial ao garoto em uma clínica de seu bairro. Os quinze mil créditos sumiram de sua conta como num passe de mágica, mas o problema no braço do garoto continuava. Se não resolvesse logo, Flavio teria dificuldade para conseguir um emprego e se tornaria um lumpen, considerado a escória da sociedade dos homens livres. Muitos pais vendiam os filhos estragados como Flavio para a Alimentos Especiais Fragger, exceto Marco Aurélio. Sua família ainda conservava alguns valores da velha ordem, dentre eles, o de um ajudar o outro. Assim, precisava de um empréstimo para terminar o tratamento do filho
Marco Aurélio entrou a passos pesados no grande prédio que ficava no centro da cidade. A Financiadora Fragger era uma tradicional empresa formada para conceder empréstimos a juros acessíveis àqueles que não tinham amigos ricos e estavam desesperados precisando de dinheiro rápido. Ao entrar, se deparou com inúmeros rostos de homens e mulheres abatidos, provavelmente tão desgraçados quanto ele. Sentou-se e aguardou ser chamado – como tudo era informatizado, sua presença era processada por uma máquina que identificava todas as pessoas no ambiente, comparando seus rostos com os dados emitidos por seus implantes bioeletrônicos e, buscando os dados da pessoa, construía uma ficha personalizada para o empréstimo. As pessoas não eram obrigadas a terem o implante, pois a regra principal é que todos eram livres, porém, quem não tinha era considerado desatualizado à vida moderna, não conseguia emprego e nem podia alugar um apartamento. A maioria das pessoas alugavam o implante. Por ser um item caro, conseguiam um bom abatimento no valor se aceitassem implantar um modelo aberto, ou seja, um modelo que copiava todos os dados coletados e enviava para o banco de dados na empresa Lime Data, que podia utilizá-los como quisesse.
Em alguns minutos, uma linha luminosa acendeu no chão indicando o caminho que Marco Aurélio deveria seguir para ser atendido. Muitos empregos não existiam mais, sendo substituídos por máquinas, exceto aqueles que dependiam da sutileza da alma humana ou que uma pessoa custava menos que a própria máquina. Por exemplo, os funcionários da Financiadora eram treinados para serem agradáveis e convenceram a todos os aptos que os empréstimos eram a solução para todos os problemas, algo que as máquinas ainda não conseguiam fazer com a mesma taxa de eficiência. Marco respondeu a uma dúzia de perguntas, mas eram mera formalidade e serviam para deixá-lo mais suscetível à proposta. Ao sentar-se na cadeira para ser atendido, toda sua vida pregressa estava disponível, do dia que nasceu até aquele momento. Marco conseguiu um empréstimo de vinte mil e teria cinco anos para pagar, a juros de três porcento ao mês e uma taxa de manutenção da conta de cinco porcento ao ano. Se os exames mudassem e sua propriedade estivesse depreciando, o tempo para pagamento diminuiria. Caso ele morresse, sua propriedade seria recolhida pela financiadora para ressarcimento dos custos restantes. Em último caso, a inadimplência seria cobrada com o recolhimento da propriedade. Dívidas não eram refinanciadas e nem caducavam: tudo ficava registrado e elas eram cobradas, sem exceção.
Marco Aurelio aceitou pagar mais três porcento para ter um seguro para doenças infecciosas e acidentes que o mutilassem, garantindo que ele conseguisse um mês de adiamento do pagamento da dívida para cada parcela paga até o momento do sinistro. Enquanto o empregado da Financiadora o encarava sorridente e lhe oferecia o leitor de impressão digital para confirmar o empréstimo, Marco colocou sua mão direita trêmula e deu um breve suspiro. No mesmo instante, a tela implantada em seu braço acendeu, avisando que o valor estava disponível em sua conta no banco. Sem agradecer ou cumprimentar o homem, Marco se levantou e saiu. Vinte mil seriam usados para pagar o resto do tratamento médico de seu filho, Flavio. Eram tempos difíceis em que o corpo era a única propriedade privada garantida e nenhum direito era mais sagrado que uma dívida contraída com a Financiadora Fragger.