
Otelo Overdrive
Parte 12
Quando Marco se levantou, Flavio estava acordado. O homem explicou para o filho que eles não sairiam juntos, mas que uma pessoa o viria buscar e ele teria que estar preparado. O garoto afirmou ter entendido e Marco deu-lhe um abraço apertado. "Vai dar tudo certo. Eu te amo, nunca se esqueça disso". Flavio viu o pai sair pela porta e voltou para o computador para esperar. A espera foi algo estranho para o garoto que nunca tivera um compromisso além de estudar e ir ao médico. Alguém viria buscá-lo e ele não sabia o que fazer – era uma situação incomoda para quem nunca fizera aquilo e nem sabia a que horas aconteceria.
Flavio comeu uma barra de proteína e esperou. Horas depois, comeu outra e mais outra. Nunca comera tanto em uma tarde, mas sentia uma vontade que cessava por alguns momentos. Arashanai chegou ao apartamento e o menino ainda aguardava. Cansada, nem percebeu que ele estava preocupado. Apenas deu-lhe um beijo, tomou banho e se preparava para deitar.
– Eu vou embora hoje, mãe.
– Boa viagem, filho. Seja responsável.
Arashanai deu no garoto um abraço e deitou. Dormiu imediatamente. Pouco tempo depois, alguém bateu na porta.
– Boa noite, você deve ser o Flavio. Eu sou Vigília e vim te buscar.
– Boa noite, senhora. Você trabalha com o meu pai?
– Pode se dizer que sim. Vamos... – Vigília fez uma pausa e olhou atentamente para o braço de Flavio. – Isso no seu braço esquerdo é um exoesqueleto? – Era uma pergunta retórica.
– Sim, senhora. O que eu preciso levar?
– Nada, só que eu tenho que tirar o leitor do seu braço antes de irmos.
No exoesqueleto havia um componente eletrônico que acompanhava o estado de saúde de Flavio, porém, o aparelho também tinha um rastreador. Não seria possível tirá-lo da Cidade com aquele aparelho junto ao seu braço. O apartamento não tinha ferramentas e ela não portava nenhum objeto para arrancar a peça. O único objeto móvel era a cadeira e Vigília a utilizaria como um aríete. O barulho que seria produzido não acordaria Arashanai por que as câmaras de sono eram a prova de som.
No primeiro impacto o menino segurou o grito de dor; no segundo, chorou. No terceiro, a dor estava tão intensa que ele não conseguia conter suas necessidades fisiológicas e urinou na roupa.
– Não tem problema. Já vi homens bem maiores que você se urinarem por bem menos. – Vigília mentiu para Flavio, tentando diminuir sua vergonha. – Eu consegui tirar o aparelho. Olha aqui. Pode se trocar e eu te espero lá fora.
Flavio, constrangido, tomou outro banho com muita dificuldade. O braço doía muito e dificultava os movimentos. Secou-se, vestiu novas roupas e saiu. Enquanto caminhava pela calçada com sua guia, ele percebeu que nunca mais veria sua mãe e seu pai e segurou as lágrimas o quanto pode.
***
Flavio ficou escondido em uma sala por alguns minutos. Vigília voltou logo depois, para levá-lo.
– Eu posso ver o meu pai, senhora?
– Infelizmente não, Flavio. Ele está muito ocupado. – Vigília fez um carinho na cabeça do garoto, tentando ser gentil.
– Eu nunca mais vou ver meu pai?
– Não sei, mas tudo pode acontecer. Quem sabe você consegue um bom emprego no continente e venha visitá-lo em breve. – Vigília sorria com afeto enquanto mentia. – Vamos que eu preciso colocar você na nave.
Enquanto caminhavam, Vigília cochichava as orientações novamente: Flavio seria colocado em uma área que não tinha banheiro. Ele teria que esperar a nave pousar no continente e, quando não ouvisse mais nenhum som, poderia sair. Quando saísse da nave, deveria correr para onde não houvesse pessoas e se esconder. Quando amanhecesse, poderia procurar emprego. Era difícil para Vigília inventar tantas mentiras por que ela mesma nunca saíra da Cidade e não fazia ideia do que o garoto encontraria. As únicas coisas que sabia eram as coisas que ouvira dos clientes muito bêbados e falantes.
Ambos entraram em uma sala cheia de coisas que Flavio nunca vira: sofás, pratos, garfos, garrafas – a sala de recepção dos clientes. Ao saírem da sala, havia outro corredor e, a frente, uma grande nave de pouso vertical que ocupava algo como um galpão fechado. Flavio ficou admirado com o veículo pois era a primeira vez que via um.
– Como isso vai sair daqui, senhora?
– O teto abre, Flavio. Não se preocupe.
– Sim, senhora.
Flavio e Vigília entraram na nave e seguiram por entre as poltronas até chegarem no fundo onde havia uma porta. Ela abriu e o escoltou para dentro.
– Essa porta abre por dentro e por fora. Ninguém vem aqui por que era usada somente em longas viagens. Certo? Então, pode ficar escondido aqui até chegar ao destino. Não faça barulho de maneira alguma.
– Sim, senhora.
– Ah, outra coisa: não fale de nós para os lumpens. Eles têm inveja de nós e podem ter de você também.
– Sim, senhora. Obrigado.
– De nada. Boa viagem.
Vigília abraçou o garoto e saiu, fechando a porta. Flavio Se escondeu embaixo de uma prateleira de aço. Agachado, começou a se sentir nervoso. Queria comer, mas não tinha nada. Incomodado, levantou-se e procurou qualquer coisa que poderia comer, mas não tinha nada. Cansado e faminto, agachou-se no chão, sob a prateleira, e dormiu. O garoto não sabia por quanto tempo, uma hora, duas. A única coisa que sabia era que fora acordado com o som alto e o trepidar da grande nave. Era hora de partir.
***
O tempo que precisou aguardar por sua luta foi difícil e Marco ficou andando dentro da sala, de um lado para outro. Pensava se não daria para fazer algo, se poderia burlar o acordo sem se responsabilizar. Ele poderia tentar ser melhor e alegar que venceu por inépcia do adversário, apesar do mesmo ter sido treinado especialmente para vencê-lo. Se vencesse, poderia voltar para casa, ou fugir. Decidiu que comeria duas barras especiais e teria a luta mais intensa que os clientes já viram.
Aghori chegou e seu olhar era tão sério como em qualquer outro dia.
– Eu quero duas barras especiais para essa luta, senhor.
– Com certeza, não. Não quero você morto antes da luta. O acordo não é esse. Você comerá uma barra, e se comporte que o Próximo está vindo.
Enquanto comia a barra especial para a luta, Próximo apareceu, sorrindo.
– Otelo, meu Otelo. Grande noite. Preparado?
Marco forçou o sorriso e respondeu:
– Com certeza, senhor. Teremos uma grande luta hoje.
– Isso mesmo, é isso que gosto! Entusiasmo. Vamos lá.
Os homens seguiram para a arena. Enquanto Próximo apresentava Cássio, o sem Alma, Marco se aproximou de Aghori e cochichou-lhe ao ouvido, sentindo confiança em suas palavras.
– E se eu matasse Próximo e fugisse daqui?
Aghori olhou-o nos olhos e respondeu, persuasivo, sem gaguejar.
– Sabia que você diria algo idiota em algum momento. Você tiraria de seu filho a chance de sair daqui e seria morto pelos guardas particulares da Cidade. Estaria morto até amanhã e outra pessoa assumiria o lugar de Próximo logo depois. Pare de pensar idiotices e lute, esta é a única maneira de salvar seu filho.
Marco perdeu a confiança, mas não a esperança de que o jogo virasse.
– E... se eu ganhar a luta? – perguntou Marco.
– Eu tiro seu filho daqui mesmo assim. – Aghori respondeu, sem hesitar.
– ...Otelo de Ébano! – concluía Próximo em sua apresentação.
Marco foi ao centro da arena enquanto era contemplado pelos clientes e analisado por Aghori. O treinador tinha certeza de que Cassio venceria, mas sabia que fomentar esperança em Marco manteria tudo como o planejado. "Pela ousadia dele, deveria jogar o garoto no mar. Só não jogo por que dá azar quebrar acordos de sangue", pensou o Aghori.
A luta começou como o esperado. Os homens pareciam se estudar na arena, até o momento que os florestes se chocaram pela primeira vez e a luta começou de verdade. Por alguns instantes, Marco defendeu e atacou com muita destreza, mostrando que era um lutador tão bom ou até melhor do que Cassio. Contudo, em outro momento, Cassio fez um movimento para esquerda e saiu parcialmente do campo de visão de Marco. Quando tentou reposicionar o corpo para ver o adversário, Cassio aparou seu florete e o repeliu o mais longe que conseguiu, abrindo sua guarda. O espadachim sem alma atravessou o pescoço de Marco com o florete na transversal, chegando até metade da lâmina da espada e retornando a sua posição inicial para ver o que havia acontecido.
Com o corpo do adversário no chão, a plateia ovacionou Cassio e ele retribuiu, saudando com o seu florete. No chão, Marco viu a última coisa de sua existência pelo seu olho esquerdo: Aghori meneava positivamente com a cabeça. Estava tudo acabado.