
Otelo Overdrive
Parte 11
Após a promessa, o treinador combinou superficialmente com Marco Aurélio como aconteceria aquela derrota. Perder não seria simples e deveria haver cumplicidade entre os dois oponentes. Assim, Aghori resgatou todo o histórico de treino de Marco no simulador para saber qual era o ponto fraco do homem.
– Aqui parece que você puxa a luta para o seu lado esquerdo.
– Sim, senhor.
– Alguma explicação?
Marco ficou em silêncio por um momento. Era a primeira vez que precisaria encarar realmente o mistério que carregou consigo por anos e levou o próprio pai para a morte.
– Eu sou... quase cego do olho direito.
Aghori não acreditou. Pessoas com deficiências eram descartadas muito rapidamente.
– Quando eu era criança, eu sofri um acidente que causou uma lesão na retina. O médico que me atendeu não fez o registro da lesão e apenas a tratou.
– E o seu pai não lhe vendeu para a Fragger por quê?
A memória de Marco era de fragmentos. Não pensava muito nos pais, pensava apenas em trabalhar – "não pense nos problemas".
– Meu pai era uma pessoa diferente das que conheci. Ele apenas chegou no médico e disse "ajude o garoto". O médico aceitou fazer tudo sem registro. Não lembro de muita coisa.
– E agora você está fazendo pelo seu filho...
– Sim.
Ambos os homens ficaram em um silêncio sepulcral. Aghori pensava na situação inédita de uma pessoa dando sua vida por outra. Enquanto isso, Marco pensava como sairia daquele problema sem prejudicar o filho. Por fim, os dois cérebros não chegaram a nenhuma conclusão.
Sem mais o que falar por enquanto, Marco foi treinar. A máquina passou a reforçar o combate de seu treino facilitando para sua visão deficiente. "Será que Aghori está me treinando para vencer a próxima luta? Teria ficado com pena de mim?" Um ponto de esperança surgiu em sua mente. Não faria sentido se era um acordo firmado, mas a esperança mantinha-se acesa.
Marco treinou com intensidade e foi embora sem falar com Aghori. Voltou para casa em silêncio, pensando em Flavio e Arashanai. Sua família, os únicos que ele realmente tinha contato. Era quase impossível falar com um parente – já era difícil falar com Arsahanai, que vivia no mesmo apartamento. Ao chegar, Flavio estava no computador. Marco o abraçou e ficou vendo o que ele fazia. Foi naquele instante que ele deu atenção ao braço imobilizado pelo exoesqueleto e lembrou que não comentou a respeito com Aghori. "Seria um problema?", pensou.
– E o braço, Flavio?
– Ainda não dói, sen... pai.
– Ah, é, eu lhe perguntei isso hoje de manhã. – comentou Marco, em um tom risonho. – Você sabe quando estará curado?
– Vou ver.
Flavio acessou um site e digitou o código de seu exoesqueleto. A máquina deu uma previsão de cicatrização completa em trinta e um dias. "Espero que não seja um problema. Não vai ser um problema, é só um exoesqueleto", Marco pensou. Evitando pensar mais a respeito, o homem tomou banho e dormiu. As barras especiais de Aghori passavam a ser de uso diário para evitar pesadelos que seriam um problema para o rendimento no treino.
Na manhã seguinte, a mesma rotina. Flavio estava dormindo. Marco foi para o treino e evitou falar com Aghori. A máquina ainda estava configurada para facilitar seu combate e, após horas de treino, a esperança ainda estava lá. Porém, tinha algo o incomodando, algo que precisaria perguntar para o treinador.
– Senhor, o meu treino...
– Está perfeitamente nos padrões. Ajustado de acordo com suas necessidades.
– Isso quer dizer...
– Eu valorizo muito as regras dessa Cidade.
Marco saiu sem dizer palavra. Entendeu que sua esperança era uma ilusão e a máquina estava configurada para deixá-lo vulnerável. Seria isso: a morte em quatro dias.
Em seu apartamento, Marco entrou em silêncio. Tomou banho e deitou. Contava menos um dia por que não tinha mais forças para ficar acordado e tentar aproveitar as horas, porém, também não tinha para onde ir. A liberdade da cidade era tão falsa quanto as janelas, o sabor das barras, as luzes da noite e eles mesmos. Pessoas falsas, achando que estavam vivendo suas vidas, mas que, na verdade, apenas trabalhavam para pagar contas. "Deveria haver algo a mais. Os clientes, comem, bebem, riem, vestem roupas diferentes e moram em outro lugar... Ser livre para eles parece ser real."
Marco dormiu novamente, sem sonhos. Ao acordar, estava novamente sozinho. Flavio dormia e Arashanai estava trabalhando. Sozinho. Caminhou rapidamente até o prédio para treinar, como faziam os homens e mulheres para seus empregos. Era um homem-máquina novamente, mas com prazo para substituição. "Não pense nos problemas, trabalhe". Falta três dias.
***
Os três últimos dias foram mais difíceis e sair da cama para treinar era um grande peso. Um dia antes da luta, Marco se levantou e Flavio estava no computador. Poderia ser a última vez que veria o filho antes da partida.
– Flavio, preciso falar uma coisa muito importante. Eu consegui uma grande oportunidade para você se mudar da Cidade amanhã. Não tem problema algum, você não é um lumpen, mas eu acredito que, fora daqui, haverá melhores oportunidades de emprego.
– Eu ainda não tenho catorze anos, pai. Eu não posso trabalhar. E tem o meu braço também.
– Tenho certeza que você será um dos mais capacitados neste novo lugar e conseguirá um emprego. Eu sei que esse exoesqueleto será necessário por mais uns vinte e cinco dias, mas passará rápido.
Marco falava com convicção, mas tinha medo. Não sabia nada do continente. Só sabia que era uma oportunidade. Não tinha certeza se haveria outra oportunidade de barganhar pela viagem do filho. Ele confiava que era a melhor escolha, o melhor momento, o único momento.
– Nós não nos veremos mais? E a minha mãe? – as lágrimas de Flavio afloravam aos poucos, mesmo que o garoto tentasse refreá-las.
– Não nos veremos. Você terá que ser adulto antes do tempo, eu sei, mas vai dar tudo certo. – às lágrimas, Marco acompanhava o filho, forçando um sorriso no rosto. – Vai dar tudo certo.
***
Marco chegou a noite e Arashanai estava dormindo. Preferiu acordá-la, pois era sua última chance.
– Aconteceu alguma coisa? – Arashanai perguntou, ainda confusa.
– Sim... não, na verdade não. É que faz tanto tempo que eu não te vejo e queria dizer boa noite.
– Só isso?
– Não. O Flavio falou para você que consegui para ele uma mudança para o continente?
– Não. O que é isso?
– É um lugar bom. Ele terá emprego lá, terá uma oportunidade melhor... Outra coisa: Eu tenho créditos acumulados na minha conta e quero deixar com você. Dê sua mão.
Marco transferiu tudo que tinha, dos créditos da venda do banco de horas aos créditos recebidos pelas lutas. Passavam de doze mil, mas Arashanai não percebeu por que ainda estava sonolenta.
– Volte a dormir. Boa noite, meu amor. Eu te amo.
– Boa noite, eu também te amo.
Arashanai voltou a dormir rapidamente e Marco a contemplou por alguns instantes. "Ainda era linda, como quando eu a conheci". Falta um dia.