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Otelo Overdrive

Parte 13

            Após um tempo voando, Flavio sentiu que a nave começava a perder velocidade e altitude. Se fosse como no momento que subira, a descida seria desconfortável se ele não se segurasse. O garoto apoiou o braço direito sob a prateleira e forçou o corpo contra a estrutura metálica. A nave parou e começou a descer, devagar. A descida foi mais demorada que a subida e terminou com um solavanco e, aos poucos, a máquina parou de fazer barulho, como se fosse desligada em etapas.
           Com medo de que alguém aparecesse, encolheu-se ao máximo até que o veículo ficasse em total silêncio. Levantou devagar, se aproximou da porta e encostou a orelha. Salvo alguns estalos do metal esfriando, estava em silêncio. Preferiu esperar mais algum tempo. Contou mentalmente dez minutos e abriu a porta, devagar. A nave estava vazia, mas tinha um cheiro desagradável de vômito. Era possível ver algumas coisas caídas no chão, provavelmente pedaços de um jantar não digerido.
           Havia algumas janelas abertas e o garoto examinou o ambiente externo. Era um espaço amplo como ele nunca vira na vida. Havia outras naves de outros modelos e algumas pessoas caminhando ao longe. Ainda era noite, mas era possível deduzir que em breve amanheceria e Flavio precisaria sair enquanto tivesse a noite para lhe esconder. Por sorte, a porta de entrada estava aberta e ele pode examinar com atenção para qual lado deveria fugir. Para a frente da nave havia mais iluminação, outras naves e pessoas; para trás, era vazio e tinha pouca iluminação. Flavio correu por cem metros para se afastar das pessoas, até que encontrou uma tela de metal. Com medo, agachou e começou a examinar o que era aquilo.
           Após pensar, entendeu que aquela tela limitava o espaço de pouso das naves e o outro, logo à sua frente. Virou-se a para a esquerda e caminhou agachado à procura de uma saída.
           Flavio caminhou por cerca de cinco minutos, paralelamente à tela, e se assustava sempre que um veículo passava ao seu lado. Em um dado momento, parou. Conseguia ouvir vindo em sua direção vozes, risos e barulhos estranhos. Ele precisava se esconder antes que aquelas pessoas chegassem.
           – Ah, e o Marquinho na festa, estava muito louco! Eu falei para ele parar com essas besteiras de encher a cara por causa da ex. – disse a pessoa mais alta.
           Todos deveriam ter pouco mais de treze anos e tinham uma postura e roupas extravagantes. "Devem ser lumpens", Flavio pensou, e ficou com medo. Mesmo com toda a descontração do grupo, o menor deles viu Flavio e parou. Apesar de tentar não ser visto, a trepadeira que subia pela tela de metal e que o garoto tentara usar como esconderijo não era muito densa.
           – Olha ali, Teuzin. Tem um moleque no aeroporto. – disse o garoto esguio
           Todos se aproximaram da tela, mas foi o maior deles que passou a falar.
           – Está fazendo o que aí dentro moleque? Está querendo entrar numa aeronave?
           Flavio ficou em silêncio, olhando para eles. Não sabia o que dizer.
           – Você é mudinho, moleque? Não fala não? Está fazendo o que aí?
           O grupo começou a zombar de Flavio, que não reagia. Muitas palavras nem faziam sentido para o garoto, mas as brincadeiras do grupo o paralisaram. Percebendo que estavam exagerando, o líder mandou todos pararem. Ele se aproximou da tela e falou "chega aí" para Flavio, que se aproximou, devagar.
           – Qual é o seu nome?
           – Meu nome é Flavio, sen... – Flavio cortou a palavra "senhor" no meio.
           Era claro que o garoto maior era o líder deles e tinha poder sobre todo o grupo, mas Flavio lembrou o que pai dissera: "não chame qualquer um de senhor". O garoto entendeu naquele momento que fazia por impulso, e tinha que ter certeza se a pessoa merecia ser chamada de "senhor". No caso de um garoto com quase sua idade, Flavio tinha certeza que não.
           – Então, Flavio, meu nome é Mateus, mas meus amigos aqui me chamam de Teuzin. Aquele ali é o Secura, o outro é Botinha, o outro é o Salgado e o último ali a gente chama de Meia Fase. – Mateus falava apontando para cada garoto, que acenava com a mão. – Então, você está fazendo o que aí dentro? Se os homens te pegam aí, chamam a polícia e tudo.
           – Eu... – Flavio hesitou. – Vocês são... lumpens?
           – Somos o quê? O que é isso, moleque?
           – Vocês não são lumpens? – perguntou Flavio, mais confiante.
           – A gente nem sabe o que é isso. – Todos riram, dando credibilidade a afirmação de Mateus. – Então, Flavio. Como você foi parar aí dentro?
           – Eu vim para cá em uma nave e não sei sair.
           – Numa nave... Sei. – O grupo riu. – Então, você quer sair? Não seja por isso. Ali ao lado a tela está meio podre. A gente vai tirar você, na moral. Não é não, gente?
           Todos concordaram e foram para um ponto onde a tela estava solta do concreto do chão. Três garotos puxaram a tela e Flavio saiu se arrastando. No final, todos os garotos aplaudiram a façanha ilegal.
           – Então, Flavio. Você mora aonde?
           – Eu morava na Cidade e vim para cá.
           – E onde é essa cidade? É São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro?
           – Não. É a Cidade. – Flavio respondeu, confuso com a pergunta.
           Todos pegaram seus smartphones e procuraram uma cidade com nome de Cidade. "Muito estranho", disse Secura, mas não se preocuparam com aquilo naquele momento. O grupo tinha outra meta e precisava caminhar por meia hora. Convidado pelo grupo, Flavio concordou em segui-los. No meio do caminho, os garotos falavam palavras estranhas, lugares e pessoas desconhecidos. Pela conversa, nenhum deles trabalhava, apesar da idade. Tudo era muito confuso para Flavio, mas ele evitava perguntar. Só perguntou para o líder onde eles estavam indo. "À praia", respondeu Mateus, e Flavio não disse nada, mas deixou claro que não sabia o que era.
           – Você já foi na praia?
           Flavio meneou a cabeça, negativamente.
           – É aquele lugar com muita areia. – comentou Botinha, em tom de sarcasmo.
           – Areia, eu sei o que é. É um composto que serve para produção de vidro.
           Todos os garotos urraram e riram, surpresos com a resposta. Nenhum dele sabia que vidro era feito de areia.
           – Então temos um nerd entre nós? Vou até passar a mão na sua cabeça para pegar um pouco dessa inteligência.
           Após Mateus, todos os outros esfregaram a mão na cabeça de Flavio e na própria. Ainda brincaram um tempo com Flavio, mas algumas perguntas o novato não sabia responder: sabia o que era energia elétrica, mas nunca vira um poste de luz, sabia o que era areia, mas não o que era a praia ou o mar. Flavio era muito diferente do grupo, e vice-versa.
           O grupo caminhou por várias ruas apenas com a luz dos postes. Brincavam, zoavam, contavam piadas enquanto faziam os cães latirem. Flavio não sabia como era um cachorro, ou um gato, e olhava para os animais com admiração. Caminharam por mais alguns minutos e começaram a ouvir o marulho e Mateus disse que eram as ondas do mar. Flavio ficou tentando ver adiante, mas era tudo preto no horizonte. Quando se aproximaram da areia, foi possível ver a espuma e o som agradável das ondas quebrando na praia. Conforme sua visão se acostumava com a pouca luz, Flavio conseguiu finalmente ver no céu aquilo que seu pai pedira para pesquisar: as estrelas. Não eram apenas corpos celestes de plasma, mas pequenos e belos pontos cintilantes em um fundo preto. "São lindas", pensou, enquanto as admirava.
           Os garotos se sentaram lado a lado e Flavio se sentou na ponta. Enquanto conversavam sobre amenidades, aos poucos, a escuridão e as estrelas foram dando lugar a tons azuis, laranjas e vermelhos. O sol se levantou no horizonte enquanto todos o admiravam e Flavio não conseguia acreditar quão belo era. Não era apenas uma esfera emissora de luz, mas também, de um calor aconchegante e uma beleza ímpar. "Vai dar tudo certo", pensou, e uma lágrima escorreu pelo seu rosto.
           Era o sol da primeira manhã, a aurora de um novo começo.

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