
Teg'hó contra Mah'daham
Relato coletado no dia 06 de abril de 1913.
Equipe técnica: José Estevão dos Reis e Afonso Amaral.
Autor do relato: Bahsa.
Etnia: Tâgsá (grupo desconhecido).
Muito tempo atrás, quando tempo nem era contado e meu povo vivia ainda em harmonia com a Mãe Terra e ela nos dava tudo, antes do homem branco aparecer e levar tudo que não era deles, vivia meu povo. Agora, resume-se a mim, Bahsa, o último dos Tâgsá.
Quero contar como os Tâgsá vivem com coragem e lutam como guerreiros que são. Para mostrar para os senhores, eu quero contar sobre meu passado, o herói Teg'hó. Ele foi um grande guerreiro da minha tribo e sua história foi contada ao redor de fogueiras pelo meu pai, o pai dele antes dele e muitos homens valentes antes deles. Nossa história não está escrita nesses papeis como os que os senhores seguram agora. Está escrita nas estrelas e é contada até hoje pelos bichos no mato, os pássaros no céu e os peixes no rio que vocês chamam de Rio Negro. A história do meu povo viverá como vive a floresta que viu tudo que se passou desde o início, quando o Deus Pedra desceu de sua maloca do céu e criou tudo que existe, do que se vê e o que não se vê.
Teg'hó foi um homem que nasceu de dia, quando o sol não fazia sombra no tronco que ficava no meio do terreiro da aldeia. Sua mãe, Kahbag, não sentiu ele nascer e Teg'hó caiu no terreiro, mas não chorou. Quando a mãe o viu, ficou muito feliz com a felicidade do filho, que sorria para ela. Aquele dia foi de festa e até os espíritos não apareceram à noite para não incomodar a maloca do pai de Teg'hó, o chefe Kawagyaam. Eu ouvi que naquela noite, Teg'hó dançou e cantou junto a tribo enquanto sua mãe estava dormindo e todos estavam bêbados de tanto beberem caxiri, mas acredito que toda história tenha seu exagero.
Teg'hó cresceu forte e valente, e seu pai o deixava livre. Kawagyaam o proibiu de uma única coisa, que foi de ir até o rio quando anoitecia. A noite é quando os mortos passeiam na floresta, mas Teg'hó não tinha medo deles. Nem Kawagyaam tinha medo dos espíritos, mas sim de uma criatura que caminhava pela floresta e comia tudo mais veloz do que o fogo come a palha seca, fazendo tudo virar um pó preto que era a comida do monstro: Nós o chamamos de Mésab. Ninguém sabia que bicho era esse e há muito tempo eles conseguiam acalmá-lo deixando uma capivara amarrada na beira do rio do primeiro dia da lua cheia para que o monstro não viesse para a aldeia. Infelizmente, Teg'hó era menino e não sabia que só coragem não mataria a criatura.
Na primeira noite de lua cheia, quando ele ainda não tinha se tornado homem, Teg'hó entrou na floresta para ver o que acontecia com a capivara que seu pai deixara em oferenda e como poderia vencer aquela grande sombra viva. Levou uma borduna, um arco, algumas flechas e a pedra do sol que seu avô lhe dera. Diziam que a pedra do sol dava luz aos caminhos na floresta e afastava tudo que quisesse fazer mal durante a noite.
Escondido entre as ramas baixas, Teg'hó viu a capivara amarrada com cipó pela barriga, parada e quieta. Mésab, a Sombra da Noite, veio como enxame preto, deslizando por entre as árvores do outro lado do rio, cruzando suas águas e chegando até o bicho indefeso. Teg'hó viu quando a grande sombra tocou algo como uma cauda, fazendo toda capivara desfazer-se como fuligem ao vento. O menino Teg'hó correu como se fugisse de onça no meio da mata, chegando na aldeia e caindo exausto no terreiro. Na mesma noite, o menino sonhou que a aldeia toda era transformada em fuligem por Mésab.
O medo de que seu povo fosse levado pela sombra para o mundo dos mortos fez o menino ser o melhor guerreiro. Se precisassem, Teg'hó teria forças para proteger a todos. Ele aprendeu a ser o melhor caçador, o melhor pescador, o mais rápido, forte e inteligente. Teg'hó virou homem e sabia que seria cacique por sua dedicação.
Foi tanto tempo de fartura e paz na aldeia que Teg'hó cresceu e quase se esqueceu do risco que Mésab causava para seu povo. Porém, na noite da oferenda, choveu muito forte e o rio transbordou. Todos sabiam que a capivara, deixada em oferenda, poderia ser levada pela chuva, preocupando a todos. A floresta rugiu como uma grande onça e os troncos das árvores rachavam, um a um, cada vez mais perto. Então, do meio das árvores, o povo viu a grande sombra chegar. Ela queria a oferenda e o chefe Kawagyaam, segurando sua borduna, ficou entre os Tâgsá e o monstro. O cacique disse que a oferenda estava no rio e Mésab disse que não, que a chuva levou e ela queria comer. Kawagyaam bateu no peito e disse "meu povo não é comida, meu povo é de guerreiros. Vá até a floresta e cace sua comida", mas a sombra não se importou e avançou sobre Kawagyaam que virou rapidamente fuligem. A borduna do cacique passou por dentro do monstro como se passasse dentro da água.
Teg'hó tentou correr até onde seu pai estava, mas Kahbag o segurou e pediu para ele não fazer nada. O monstro rugiu como se risse e foi embora, mas deixou a ordem de que deixassem a capivara, senão ele voltaria e comeria a aldeia toda. Naquela noite, os Tâgsá choraram pela morte de Kawagyaam e por que não tinham um corpo para o funeral. Quando os espíritos se foram e o sol voltou, Teg'hó se tornou cacique. Em sua missão, ele prometeu que a primeira grande ação seria que seu pai seria vingado e a Sombra da Noite seria destruída.
Para conseguir salvar a tribo, Teg'hó participou de um dos rituais mais poderosos do pajé para ir ao céu e falar com os deuses. Todos pediram para ele não fazer isso por que os deuses não falavam com a tribo desde o dia que o Deus Pedra subiu para a maloca do céu novamente. Teg'hó confortou a todos e prometeu que nada ia acontecer de errado, e assim foi. O pajé deu-lhe a bebida sagrada, e os olhos de Teg'hó se fecharam. Ele subiu ao céu até onde fica a maloca do Deus Pedra. Porém, antes de conseguir falar com o Deus, a Sucuri Mãe da Chuva avançou em sua direção.
Teg'hó estava desarmado e esperou ser atacado pela Mãe da Chuva, mas ela apenas se enrolou ao seu redor, sem tocá-lo. Ela queria conhecê-lo e ele contou sobre os Tâgsá, a morte de seu pai e Mésab. A Mãe da Chuva se compadeceu dele e prometeu ajudá-lo, dizendo onde ele encontraria a arma que mataria o monstro: a borduna mágica feita do dente da Dehutsáb, uma deusa cobra morta pelo Deus Pedra que quis mandá-la para ser rainha do rio Negro e ela se rebelou – não aceitou deixar de ser a Rainha da Noite. Para encontrar a borduna, Teg'hó deveria caminhar sempre deixando o sol da manhã à sua direita e o pôr do sol à sua esquerda. Ao chegar no lugar, deveria subir uma montanha e, lá em cima, teria que lutar contra Wéd'áp, bicho semelhante ao caipora que vocês falam tanto. Porém, Wéd'áp não é Doh'áy – ele é maldade pura, como o homem branco.
Teg'hó abriu os olhos ao anoitecer. Quando acordou, convocou do seu povo três guerreiros valentes para irem até a montanha. Tehwágá, Dapuhy e Kawágdeh levantaram suas bordunas em sinal de compromisso. Enquanto não voltassem, o pajé cuidaria da aldeia. Na manhã seguinte, Teg'hó olhou a posição do sol e eles seguiram a orientação da Mãe da Chuva.
Teg'hó e os três guerreiros caminhavam durante o dia e dormiam durante a noite, caminhando por três dias. No meio dia do terceiro dia, a floresta ficou para trás e os quatro viram a montanha. A montanha era muito alta, mas eles não desanimaram. Caminharam por um caminho que subia e, quando anoiteceu, pararam para esperar a manhã seguinte. No meio da noite, Teg'hó foi o primeiro a acordar com os gritos de Kawágdeh. Quando ele chamou pelo amigo, ouviu apenas uma resposta: "Kawág tem carne boa". O caipora era um bicho da noite, traiçoeiro e perigoso.
Teg'hó, Tehwágá e Dapuhy não voltaram a dormir àquela noite. Aumentaram a fogueira e ficaram parados, ouvindo a tudo que acontecia à noite. De manhã, os três estavam cansados e com sono, mas continuaram subindo a montanha. Chegaram no meio da tarde em um lugar com muita neblina, como se as nuvens do céu nascessem ali. Teg'hó tentou acender uma fogueira, mas a madeira estava muito molhada. Todos voltaram até onde a neblina não era forte e a madeira estava mais seca para acender uma fogueira. Durante a noite, Dapuhy ficou cuidando da fogueira para que ela não apagasse. O medo do ataque de Wéd'áp ajudou Dapuhy ficar acordado, mas ele ficou muito cansado para subir a montanha. Teg'hó e Tehwágá prometeram subir, matar o monstro e pegar o dente. Então, subiram.
No alto da montanha, quase não viam nada. A neblina deixava tudo difícil. Era frio e não dava para ver dois passos em qualquer lado. No meio da neblina, os dois ouviam "Kawág tem carne boa. E Teg'hó? E Tehwágá?". Tehwágá ficou com medo, mas Teg'hó não, e começou a zombar do monstro, pedindo para ele comer seu braço, mas antes, teria que engolir a borduna. O caipora riu, mas só isso e seus passos os guerreiros ouviram, indo de um lado e para o outro. Tehwágá tentou acertar uma flecha no monstro pelo som e recebeu de volta uma pedrada do tamanho da sua cabeça. Ela passou ao seu lado e teria matado qualquer homem que tivesse atingido.
Tehwágá agachou, desviando da pedra, e eles ouviram os passos pesados de Wéd'áp aproximando rápido como uma jaguatirica, mas pesado como uma anta. Antes que pudesse reagir, Tehwágá foi derrubado e mordido. Teg'hó tentou atacar com sua borduna, mas o monstro o derrubou e ele caiu em uma parte mais baixa da montanha. Tehwágá começou a gritar de dor e Teg'hó começou a subir até onde ele estava. Enquanto Teg'hó subia, ouviu um grito do caipora, que começou a dizer "Teg'hó furou minhas costas! Vou comer sua carne, Teg'hó!". Teg'hó não entendeu por que o monstro falava dele, mas continuou subindo para ajudar seu amigo. E o monstro gritou de novo e chamou Teg'hó de novo pelo nome. Quando Teg'hó subiu até onde estava Tehwágá, viu sua borduna e muito sangue no chão: o sangue de seu amigo e de Wéd'áp.
Teg'hó seguiu em silêncio o rastro do sangue e os gritos do monstro que o chamava aos gritos. Teg'hó encontrou o monstro e o chamou para a luta. O caipora correu para atacar e o homem acertou sua cabeça com a borduna, saindo de lado para não ser atingido. O monstro caiu e ia se virar quando Teg'hó bateu com sua borduna no pescoço de Wéd'áp novamente, tantas vezes que a cabeça se desprendeu do corpo. Então, ele gritou de orgulho e correu para ajudar Tehwágá, mas Tehwágá estava morto. Enquanto Teg'hó lamentava pelo amigo morto, Ya'amtéh, um menino da tribo apareceu saindo do meio da neblina. Eles se abraçaram e Teg'hó perguntou o que o menino estava fazendo ali. Ya'amtéh disse que também sonhou com a Mãe da Chuva e que ela o mandou ir atrás dos guerreiros por ter alma de um guerreiro antigo e precisava ajudar o povo.
Ya'amtéh e Teg'hó levaram os corpos de Tehwágá e Kawág até o pé da montanha e fizeram o funeral dos dois. Eles guardaram as cinzas em folhas de bananeira e colocaram tudo dentro de cestos feitos por Teg'hó e Dapuhy. Enquanto Ya'amtéh e Dapuhy recolhiam as cinzas, Teg'hó subiu a montanha novamente para encontrar a borduna. Ficou lá até anoitecer e os espíritos aparecerem aos poucos. Mesmo com o barulho dos espíritos ofendendo, Teg'hó não ficou com medo e caminhou entre eles com a pedra do sol, procurando embaixo de pedras e em frestas entre pedras grandes. Os espíritos malignos se afastavam dele e os meninos-sombra também, mas Teg'hó ainda os ouvia assoviando no meio da escuridão. Nada acontecia e Teg'hó não sabia mais onde procurar, até que ele conseguiu ver uma luz fraca ao longe. Caminhando até a luz, ela ficava mais forte e mostrava que não era só uma luz, mas era o espírito de seu pai, Kawagyaam. O pai disse: "filho guerreiro e corajoso, você venceu Wéd'áp e me traz muito orgulho. Todos os espíritos aqui têm inveja de você porque morreram tentando fazer o que você fez. Abaixo de mim, está a borduna. Pegue-a e destrua Mésab."
Teg'hó cavou com as mãos durante a noite toda. De manhã, Ya'amtéh apareceu com o arco e o machado, pois estava com medo de que tivesse acontecido algo com o seu cacique. Para sua alegria, Teg'hó dormia ao lado de um grande buraco feito no chão. Em suas mãos sangrando, estava uma bela borduna de um preto perfeito. Ya'amtéh esperou Teg'hó acordar para lhe dar um peixe assado para comer e este deixou o menino segurar a arma. Dava para sentir que ela tinha muito poder só ao tocá-la, um poder que poderia acabar com qualquer monstro que fizesse mal ao seu povo.
Os dois desceram novamente até o sopé da montanha, carregando a borduna e a pele de Wéd'áp que Teg'hó retirou do corpo. Dapuhy já os esperava para poderem voltar para aldeia. Todos estavam orgulhosos da conquista e, mesmo com a morte de Tehwágá e Kawág, todos sabiam que os dois se sentiam vingados. Eles não se sentiam infelizes, pois o ódio dava força e vontade de lutar. No dia que Mésab aparecesse, eles estariam pintados para a guerra e faria uma grande festa depois, assim prometia Teg'hó aos outros. Ya'amtéh disse que queria pintar-se para a guerra também, mas Teg'hó o repreendeu e disse que os meninos ficariam com as mulheres. Ya'amtéh não gostou da ordem, mas ficou em silêncio. Ya'amtéh era um menino muito corajoso e tinha ainda na memória a visão com a Mãe da Chuva e, por esse motivo, não ficaria como os meninos, escondido, se ele soubesse que poderia mostrar seu valor para a tribo.
A caminhada de quatro dias à aldeia foi segura como a ida, mas com muitos risos nos dois primeiros dias do retorno. Porém, passado o tempo, o orgulho e a alegria perderam força e a memória dos amigos mortos se intensificou, assim como a luta contra Mésab. Todos ficaram mais silenciosos nos dois últimos dias de viagem. A luta seria inevitável, mas eles temiam a morte da aldeia toda se a borduna não conseguisse matar o monstro. Mésab mataria a todos, de guerreiros até os bebês, e a memória do povo se tornaria fuligem. Teg'hó era o cacique e precisaria estar preparado para uma luta que mudaria a história de seu povo, mas ele temia não ser digno dessa responsabilidade.
Na última noite antes deles chegarem a aldeia, Teg'hó sonhou com a Mãe da Chuva. Ela o elogiou por sua luta contra Wéd'áp e o tranquilizou sobre a luta. Mésab não era um deus impossível de ser derrotado, não era nem mesmo um guerreiro. A criatura era apenas um aproveitador, algo que dependia da fraqueza do alvo para conseguir o que queria. Como o monstro sempre assustou a todos com sua aparência maligna, todos os homens se submeteram a ela. Antes de Teg'hó acordar, a Mãe da Chuva disse que a Sombra da Noite tinha medo de tudo que não fosse da noite. Ela tinha medo do dia e do fogo e isso poderia ser usado contra ela.
Teg'hó acordou mais confiante, mas tinha que ter certeza de que sua vingança levaria à vitória. Enquanto caminhavam, conversou com Dapuhy sobre como tudo seria feito: a aldeia se juntaria e formaria muitas fogueiras no terreno, dificultando o movimento da Mésab e ajudando a vencê-la. Os guerreiros não usariam bordunas, mas tochas e revidariam sempre que o monstro tentasse atacá-los. A função de derrotar a criatura seria de Teg'hó e sua borduna. Ao chegarem na aldeia, todos ficaram contentes no começo, mas depois choraram pelos mortos. A pele de Wéd'áp foi dada para as mães de Tehwágá e Kawág, Wagsó e Tegág. As mulheres cortaram a pele em duas partes e as usaram para enterrar as cinzas dos filhos.
Os preparativos para o retorno com Mésab começaram no mesmo dia. Teg'hó mandou um mensageiro para a aldeia dos Méh'Waáh. As mulheres e as crianças sairiam antes da lua cheia e os homens ficariam para enfrentar a Sombra. Muitas fogueiras foram preparadas durante a lua crescente em vários lugares do terreiro, deixando pouco espaço para o monstro tentar atacar os guerreiros, e todas foram protegidas da chuva com palha. No último dia da lua crescente, todas as mulheres, crianças e idosos partiram. Os homens velhos queriam ficar para lutar, mas Teg'hó não deixou, pois eles guardavam a memória da tribo. Os homens dançaram aquela noite e beberam caxiri, divertiram-se como se fossem morrer no dia seguinte.
No último dia, Teg'hó deixou todos tocarem o dente de Dehutsáb. A arma deu coragem a todos e eles gritaram e debocharam do monstro, dizendo que ali seria sua morte. Teg'hó ordenou que todos acendessem as fogueiras quando o Sol foi embora e os homens ficaram parados do lado oposto de onde o monstro viera a primeira vez. Quando estava escuro, eles ouviram um grande barulho vindo da floresta e as árvores estavam quebrando. Dapuhy disse "ele vem lá, ele vem lá!", e todos começaram a falar. Então, Teg'hó gritou bem forte, assim: "estou com o dente de Dehutsáb, hoje eu destruo Mésab". O som ficava mais forte e mais forte, como se muitos homens batessem os pés, dançando. As fogueiras estavam brilhando já e queimavam os troncos grossos que faziam a chama ficar mais alta que qualquer homem ali.
A Sombra da Noite passou por dentro de uma oca e a lançou no ar em pedaços. Apesar do susto, os homens caçoaram do monstro que queria intimidá-los. Teg'hó percebeu que o monstro estava bem maior que da última vez que apareceu, algo do tamanho de um bonde. Ele começou a se mover entre as fogueiras, evitando tocá-las. Ficava comprido como uma cobra e se ajeitava onde não tinha fogo. Se ela fosse menor, poderia ser mais perigoso. Os homens, com as tochas, açulavam o monstro, deixando cada vez menos espaço para ela se mexer. Quando o monstro tentava atacá-los, era bloqueado pelo fogo das tochas e a fuligem de seu corpo estalava como madeira molhada e virava fagulhas que subiam para o céu. O monstro parecia sofrer, pois recuava o que parecia ser sua pata ferida. Era uma pata estranha, sem forma, como se fosse um pedaço de pano preto e vivo.
Teg'hó viu, com a ajuda das fogueiras, que Mésab era feita de fuligem solta, como se muitas vespas voassem formando aquele monstro, porém, tinha mais fuligem no meio, tanto que não passava luz como no resto do corpo. O cacique não sabia como a borduna seria melhor que as tochas. Ele se aproximou e começou a ofender o monstro e este o atacou. Teg'hó ficou com medo, mas atacou a pata do monstro com a borduna mágica. A arma abriu a pata de Mésab ao meio e lançou muitas fagulhas para o céu. O monstro urrou, como se tivesse com dor, e todos se sentiram mais corajosos. Porém, mal aproveitaram o ataque quando Nihsú perdeu a ponta da sua tocha – ela estalou e caiu no chão. Mésab o atacou com muita rapidez e o guerreiro virou fuligem. O mais jovem da roda, Yétoóh, correu gritando que ia morrer e nunca mais voltou para a aldeia. Se voltasse, não seria recebido e seria tratado como se tivesse morto.
Nenhum homem poderia ficar mais admirado com o que aconteceu depois disso. Ya'amtéh, o menino que deveria ir com as mulheres e crianças para a outra aldeia, veio correndo da floresta e pegou uma tocha, assumindo o lugar de Nihsú. Teg'hó ralhou com o menino, mas ele disse que também era guerreiro e ia lutar. Os homens ficaram com vergonha da coragem de Ya'amtéh, mas também ficaram felizes. Para tentar ajudar Teg'hó, eles começaram a tentar irritar novamente o monstro, o ofendendo e gritando. Teg'hó aproveitou a zombaria para atacar, tirando pedaços que viravam fagulhas e, pouco a pouco, entre um ataque e outro de Mésab, ele ficou muito menor do que quando matou Kawagyaam.
Com medo de perder a luta, a Sombra tentou um golpe fatal contra Teg'hó, mas o cacique era um grande guerreiro e conseguiu desviar, cortando, ao mesmo tempo um grande pedaço da pata do monstro. Mésab fez um barulho como se fosse um esturro de onça, mas mais alto e longo. O monstro tentou um ataque contra Ya'amtéh, que era o menor do grupo. Porém, o menino desviou e estocou a pata da Sombra com a tocha, queimando um bom pedaço. Teg'hó não deixou a oportunidade passar e fez um novo corte, abrindo uma grande fenda no corpo da criatura. Todos ouviram o rugido do monstro e se assustaram no começo, mas todos viram a grande ascensão de fagulhas. Todos se sentiram corajosos e começaram e pegar tocos com brasas das fogueiras e jogarem contra a Sombra enquanto seguravam a tocha na outra mão. As brasas acertavam Mésab e ele queimava aos poucos. O chão também não era mais lugar para pisar e o monstro começou a tirar as patas do chão.
Os guerreiros não entenderam quando Ya'amtéh deixou sua posição, parecia que o menino tinha desistido da luta. Porém, ao longe, o menino gritou "Kahbag, podem vir". E a dúvida virou admiração e respeito quando todas as mulheres, crianças e velhos apareceram correndo com tronco, cestos e tigelas e ficaram na roda mais externa da luta e alimentaram o fogo. Com os cestos e tigelas, eles recolheram as brasas e jogaram contra o monstro. Todos da aldeia ajudaram a lutar contra Mésab e este foi diminuindo de tamanho conforme queimava seu corpo. Com o monstro confuso com tantos ataques, Teg'hó continuou arrancando parte por parte. No chão, as brasas diminuíam o espaço no chão onde o monstro poderia pisar.
Quando Mésab estava do tamanho de um homem grande, ele gritou o nome de Teg'hó. O cacique pediu para que todos parassem para deixar o monstro falar. Mésab disse: "se me deixarem ir, farei de vocês o maior povo deste lugar. Eu eliminarei todos os seus inimigos, aldeia por aldeia". Teg'hó riu e respondeu: "meu povo tem orgulho da guerra e da vitória justa, conquistada na batalha. Não precisamos de uma coisa covarde como você, que se humilha ao invés de morrer com honra.". Então, apontando para Ya'amtéh, continuou dizendo: "Até os meninos tem mais coragem que você". Depois, sem dar atenção ao monstro, ordenou que todos avançassem mais um pouco.
A última tentativa de assustar de Mésab foi com um som mais alto que dez onças e mais profundo que os ventos das tempestades da estação das chuvas passando pelas árvores. Ele gritou: "Eu existo antes das árvores, antes dos pássaros, antes de vocês, e estarei aqui depois que tudo isso se for. Eu sou a escuridão da sombra" e ele disse que seu nome era um que nunca havíamos ouvido, algo como Mah'daham. Nós nunca usamos esse nome, mas as suas palavras ficaram como uma promessa de vingança. Ele terminou dizendo: "Eu sou Mah'daham e vou existir para sempre". Teg'hó o calou com um golpe de cima para baixo, como fazemos com nossos inimigos em seu último momento de vida. Mésab foi dividido ao meio e seu corpo subiu em fagulhas mais intensas que qualquer fogueira poderia fazer de uma vez. Do meio do corpo, uma batida oca, como em uma cabaça, seguido por um estouro. No chão, caíram duas coisas que pareciam tigelas bem-feitas e que juntas, formavam uma bola. Do seu meio, uma coisa preta e mole como a seiva da seringueira pulou sobre os guerreiros, que lhe abriram espaço. Esticada como uma capa preta, o monstro saiu pulando e fugiu para a floresta. Enquanto fugia, os Tâgsá correram jogando brasas quentes e xingando até a borda da aldeia.
Foi uma noite de festa aquela. Muitos homens e mulheres dançaram e beberam caxiri até dormirem. Teg'hó foi muito elogiado, mas ele também elogiou a todos, exceto Yétoóh, que foi tratado como morto a partir daquele momento. Ya'amtéh foi outro que recebeu elogios e agradecimentos por que Teg'hó disse que ele tinha salvo a muitos ali, assim como o salvara sobre a montanha. Foram muitos outros anos de fartura e, quando Teg'hó ficou mais velho, deu a borduna para Ya'amtéh e este prometeu cuidar da tribo se Mésab reaparecesse. Ya'amtéh se tornou cacique e manteve a promessa, e a borduna foi passada entre os caciques por muito tempo, até os homens brancos atacarem a aldeia e nos destruírem.
Manaus, 15 de junho de 1913.
Meu querido irmão Benedito,
Preferi enviar essa carta para você por que tinha medo que esta história que lhe envio em anexo fosse mais uma dentre muitos outros registros guardados nos arquivos do escritório. Desfrute o quanto puder dessa história como eu desfrutei e, depois, guarde-a. Não é uma história qualquer, tenha certeza de que não é loucura de um moribundo ardendo em febre. É uma pérola pitoresca.
Ouvi toda a história de um índio e, durante o registro, eu a tratei apenas como uma lenda. Como não sabes, é isso que fazemos atualmente: anotar lendas para termos um registro histórico. Nosso diretor, o marechal Rondon, tem grande apreço por essas histórias. Por sorte e lábia, José e eu saímos do escritório daqui e ganhamos a rua. Foi assim que conhecemos Bahsa, o índio. Ele vive aqui em Manaus e não parece com um índio aldeado. Ele veste roupas simples e trabalha transportando coisas e pessoas em uma canoa. O que nos encantou e nos fez conversar com ele foi aquele olhar profundo, como se ele fosse alguém muito sábio. Primeiro, acreditamos que se tratava de um mameluco. Depois, de um mestiço fugitivo (ele falava bem para um analfabeto). Por fim, não nos importamos mais.
Começamos a ouvir com descrença, mas ficamos sem palavras. Era rica em informações e cheia de aventura. É algo incomum nas histórias indígenas tantas informações, ao menos nas que tivemos contato. José estava quase sem fôlego no fim do relato. Eu tive que manter total concentração enquanto anotava tudo em um bloquinho. A técnica de taquigrafia quase se perdeu em meio a tantos nomes, mas eu tenho certeza que o resultado foi bom. José disse ao homem que nunca vira uma história tão cheia de detalhes e Bahsa respondeu que era a história mais importante de seu povo, os Tâgsá (não temos outros registros deles).
Até este momento, tudo bem, era mesmo uma bela história. Então, José continuou. Eu vou transcrever para que você entenda o que passamos. Ele disse: "Então, ela é muito interessante, mas eu ainda não entendi uma coisa. Foi seu pai que contou toda a história desta forma que você está me contando? Como vocês fizeram para guardar tão bem essa história depois de tantas gerações?" O que estava estranho até o momento, ficou mais.
Bahsa começou a ficar incomodado, como se soubesse que não acreditávamos nele. Ele disse o seguinte: "Não senhor. Meu pai contou a história sim, mas eu sei a história, eu vivi a história. Ninguém sabe melhor a história que eu, senhor." Eu fique bem assustado, mas José continuou perguntando. Meu amigo quis saber se era algum ritual de vidência, algo que eles poderiam usar para ter visões dos antepassados e que é recorrente em algumas tribos. Bahsa olhou bem nos olhos de José e disse "Não senhor. É a história do meu passado. Eu vivi essa história. Como eu lhe disse, Teg'hó é meu passado. Eu sou Teg'hó e renasci para reencontrar minha borduna que vocês, homens brancos, roubaram ao matar meu povo. Mésab está voltando e só o dente de Dehutsáb poderá destruí-lo". Bahsa ficou algum tempo, bebeu sua cachaça e saiu sem pagar.
Nós não o cobramos por que, mesmo sendo uma história fantasiosa de mais, a voz convicta do índio nos deixou sem reação. Posso lhe dizer que foi até barato um copo de cachaça por uma boa história. Depois dele ir embora, eu reli o começo da história. Bahsa disse mesmo que Teg'hó era seu passado, e não seu antepassado, e nem percebemos.
Eu sei que Bahsa estava dizendo a verdade quando meu amigo pediu uma prova do que nos contara. O homem tirou do bolso uma pedra bastante peculiar e disse que era a pedra do sol, perdida enquanto ele tentava encontrar a borduna e esquecida sobre a montanha. Eu toquei a pedra e posso dizer que havia algo de muito estranho naquilo.
Por ora, estamos bem e mantemos os registros. Assim, terei muitas histórias para contar para todos assim que voltar. Aproveito para perdi-te que, quando vires mamãe na missa, diga-a que sinto saudades e provavelmente estarei de volta em setembro, antes das chuvas aqui. Espero não chegar antes da carta.
De seu irmão que lhe tem grande estima,
Afonso Amaral