
Habib
Ernesto Passos era um detetive que contava os dias para a aposentadoria. Os quase vinte e cinco anos de carreira lhe renderam certo prestígio e amigos e, um deles, queria Passos trabalhando em sua agência particular. Salomão também era detetive e sempre ambicionou ter uma empresa no ramo e, para atingir esse sonho, precisava pessoas capacitadas e confiáveis como Ernesto. Até aquele momento, o escritório tinha dois detetives, uma secretária e Salomão.
Em um evento que Salomão participou, ele conheceu o gringo que mudou sua cabeça. O homem elogiou seu pequeno escritório, mas afirmou que faltava um up to date no local e nos equipamentos. Ernesto, contudo, não compartilhava do mesmo orgulho e nem mesmo do entusiasmo que Salomão em novas tecnologias. "Os tempos estão mudando", disse o proprietário, mas o veterano não queria saber de mudanças, exceto a que planejava para o futuro próximo: se mudaria para o interior com a esposa e viveria com tranquilidade os anos que ainda lhe restava – não sabia quantos, mas esperava que vivesse mais que os pais, falecidos antes dos setenta. Salomão, ao contrário, queria ampliar a agência e enviou o sobrinho da esposa para fazer o curso do gringo nos Estados Unidos e colocou na fachada, escrito para que todos lessem que a agência Panopticom tinha "detetives de nível internacional".
Na segunda-feira pela manhã, Salomão saiu de sua sala em êxtase: havia um novo serviço para Ernesto e eles iriam no dia seguinte até o cliente discutir a questão. Contudo, Reginaldo, o sobrinho de Salomão, havia voltado dos Estados Unidos e começaria a trabalhar com o veterano na terça. O rapaz estava há um ano fazendo o curso e Ernesto o ensinaria como aplicar seus conhecimentos na prática. Apesar de não gostar da ordem, o detetive não discutiu. Ele se sentia em dívida perpétua com Salomão, mas acreditava estar velho demais para ser tutor de um jovem que provavelmente havia se tornado arrogante vivendo um ano no estrangeiro.
Às nove horas, Salomão, Ernesto e Reginaldo foram ao escritório do cliente, em sigilo. Augusto de Rose era um deputado importante e a divulgação do caso causaria sérios problemas a sua reeleição. Então, às portas fechadas, o deputado explicou aos detetives que sua filha, Jussara, saiu do apartamento dele, no centro de Campinas, e desapareceu com uma valise do deputado. Ao saber que a missão era trazê-la com a valise ao custo que fosse necessário, os olhos de Salomão brilharam.
Augusto autorizou a entrada dos homens em seu apartamento e enfatizou a necessidade discrição total antes liberá-los para o trabalho. Os três foram acompanhados até a entrada do prédio por Cássio, padrinho de Jussara e que parecia mais abatido do que Augusto pelo desaparecimento. Antes de partirem, o padrinho enfatizou como Jussara era importante como a uma filha para ele e que só queria que ela voltasse a salvo.
Dentro do carro, Reginaldo propôs que fizessem uma investigação dos registros telefônicos da garota ou o histórico de acesso à internet. Salomão chamou-lhe a atenção, irritado, e falou sobre como Brasil e Estados Unidos eram países diferentes. Em seu país, não tinha como aplicar tudo que ele havia aprendido, o trabalho era mais difícil e que dependia de esforço e disposição do detetive. Assim, o rapaz deveria primeiramente prestar mais atenção para começar qualquer investigação com as informações passadas como, por exemplo, saber que foi dito que Jussara era afônica e não usaria o telefone. Em segundo lugar, saber que era impossível que a garota tivesse internet.
Reginaldo tentou explicar que, de fato, os Estados Unidos era um país mais moderno e foi interrompido por Salomão. O tio o lembrou que, sem tanta modernidade, o rapaz deveria acostumar-se com a realidade para seguir carreira e ordenou que seu sobrinho apenas olhasse-os trabalhar a partir dali para entender como se fazia "à moda antiga". O novato murmurou,positivamente e, então, os veteranos começaram a discutir hipóteses. Ambos concordaram que a era provável que a garota teria se apaixonado e fugido com o amante, justificando tal conclusão com a afirmação de que romances de novela sempre geravam ideias estúpidas em garotas.
No apartamento do deputado, foram recebidos por Conceição, a empregada que trabalhava na casa desde que Jussara era bebê. Por anos, a empregada ajudou a antiga patroa a cuidar da garota e lembrava com pesar alguns eventos presenciados: quando Jussara parou de falar ainda pequena e quando Marina, a mãe, foi embora após o divórcio. A história da filha do deputado era cheia de reticências, o que detetives experientes entendiam ser eventos que só não afetavam quem tinha dinheiro e poder. Conceição concluiu dizendo que Jussara havia levado algumas roupas, a carteira, uma mochila e a valise do deputado e Ernesto acrescentou em sua mente a hipótese de vingança contra o pai.
No quarto de Jussara, os três encontraram poucas pistas. Conceição explicou que a garota saia esporadicamente e ia até o Centro de Convivência Cultural próximo ao prédio para encontrar os poucos amigos que tinha da época da escola e que entendiam a linguagem de sinais. O quarto foi limpo para deixar como Jussara gostava, o que dificultava coletar informações importantes para a investigação. Ernesto olhou o lixo que poderia ser uma fonte de pista, mas que agora não tinha mais nada. O computador da garota parecia não ter nada relevante e não tinha internet, como Salomão havia dito. Conceição trouxe aos homens um diário guardado por Augusto como parte de um castigo, mas parecia ser inútil por estar parcialmente escrito em códigos. Até alguns meses atrás, estava escrito normalmente, mas, aos poucos, um alfabeto muito elaborado substituiu totalmente o alfabeto romano.
Tio e sobrinho olharam para o diário e ficaram em silêncio por alguns instantes, até Reginaldo pedir para levá-lo e Conceição concordar. Enquanto isso, Ernesto olhou despretensiosamente para a antiga escrivaninha e encontrou a ponta de um pedaço de papel em uma fresta. Ele sacou seu canivete e forçou o pedaço pequeno para fora. Não era muito, mas parecia um cartão de visitas que ele examinou rapidamente, mas não reconheceu o que havia desenhado.Na parede, havia uma foto de Jussara sentada em um parque, sorrindo para o fotógrafo. Ele perguntou se não havia uma foto recente e Conceição afirmou que aquela tinha poucos meses. Admirado, o veterano pediu a foto para a mulher que,antes de entregar, comentou como Jussara era bonita. Ernesto concordou, retirou a foto da moldura e os três homens partiram.
O resto do dia, Reginaldo ficou sentado com o diário e seus livros. Ele teve bons resultados com os métodos de descriptografia, mas era uma tarefa manual morosa. Quando anoiteceu, restavam apenas Reginaldo e Ernesto no escritório. O novato entrou de corpo e alma no trabalho, enquanto Ernesto apenas postergava sua saída, ouvindo o programa de rádio "A voz do Brasil". Após algum tempo, cansou-se do rádio e levantou-se para ver como estava o progresso de Reginaldo que lhe entregou uma folha com parte do que Jussara escreveu dias antes. Das palavras não traduzidas por serem ininteligíveis, habib se destacou. Os homens sabiam que era uma palavra árabe, mas não sabiam seu significado. Naquele momento, a esperança de Ernesto estava no velho amigo Isaac: um respeitoso, mas humilde dono de antiquário com um vasto conhecimento em muitas áreas.
Na manhã seguinte, Ernesto e Reginaldo foram ao antiquário "Belezas do Passado", um galpão simples por fora, mas com uma variedade enorme de móveis e outros itens antigos e bonitos que se harmonizam em uma composição pitoresca. Ernesto e Isaac se cumprimentaram efusivamente, mas Reginaldo recebeu tanta atenção e um cumprimento tão amigável quanto o veterano. Apesar da recepção calorosa, Isaac era um homem visivelmente calmo e que trazia paz interna aos que estavam próximos a ele.
Após as devidas apresentações, Ernesto foi direto no motivo de sua visita e Isaac adiantou que precisaria da ajuda de outra pessoa. Ernesto aceitou – não havia vaidade em ser detetive, contanto que não se gastasse mais dinheiro do que o necessário para o trabalho. Isaac ligou para Ali, seu amigo que o ajudou a interpretar as palavras faltantes. Quando a tradução não prosseguiu, Isaac agradeceu ao amigo e desligou o telefone, explicando aos detetives que o problema surgido na tradução era uma mudança no idioma escrito. Poderia ser qualquer um, apesar de parecer uma língua semítica que nem ele e nem Ali conheciam.
Ernesto agradeceu a ajuda de Isaac e partiu com Reginaldo. No caminho para a agência, o rapaz substituiu as palavras em árabe por suas traduções no texto decodificado. Não foi surpresa para ele ver que,como suspeitava, eram registros semelhantes a declarações de amor, mas com ideias desconexas. Jussara parecia falar de uma pessoa, mas também de algo.Aquele a quem ela se referia era descrito por meio de metáforas que tornavam impossível dizer se era de fato uma pessoa. Então, Ernesto direcionou o trabalho de ambos ao pedaço de papel encontrado no quarto de Jussara,entregando-o para Reginaldo analisar. O novato fechou os olhos e visitou mentalmente lugares que ele conhecia na cidade. Como a maioria dos jovens, adorava sair com os amigos e já tinha ido para vários bares e boates, mesmo que fosse apenas para sentar-se do lado de fora para conversar e beber. Após alguns minutos, teve um vislumbre mental do fragmento se completando sozinho em sua mente e formando a fachada de um bar no distrito de Barão Geraldo. Ao receber tal informação, Ernesto saiu do estacionamento da agência com o carro em direção ao local.
A viagem demoraria cerca de quinze minutos. Em silêncio, Reginaldo olhava os prédios e não percebeu grandes mudanças em um ano. Desde criança, tudo parecia manter-se igual, como se a cidade tivesse quase parada no tempo, exceto Ernesto, que parecia ter envelhecido dez anos em um. Salomão havia deixado claro a Reginaldo que não deveria perguntar nada por que o detetive tivera um ano difícil. Não houve um detalhamento sobre o que havia ocorrido, mas foi um divisor de águas para ele optar em se aposentar, mesmo sendo bom no que fazia.
Por instinto, Ernesto olhou pelo retrovisor e comentou sobre o carro que vinha atrás. Reginaldo olhou também e reconheceu o veículo como o mesmo que estava estacionado próximo ao escritório do deputado. Apesar da dúvida, Ernesto não quis tratar como mero acaso reencontrar um carro em dois eventos ligados a uma investigação e, para a segurança de ambos, pediu para Reginaldo seu revólver calibre 38 e o pôs no bolso do casaco, continuando a viagem tranquilamente.
Chegando ao destino, ambos puderam ver claramente a logomarca pintada na parede de uma casa adaptada em bar. O local se chamava "Pirâmide" e tinha como logo um triângulo isósceles com o olho de Hórus dentro. Reginaldo explicou que não havia nada de especial no bar: era uma casa com uma sala grande que servia as bebidas em um balcão de madeira onde ficava uma chopeira. As bebidas destiladas ficavam atrás do balcão, em prateleiras de madeira, enquanto as bebidas fermentadas ficavam em freezers em outros cômodos da casa, assim como a cozinha, que ficava ao fundo. De onde estavam, perceberam que havia algo como um porão baixo e que soerguia o bar em relação a rua, comum em muitas casas antigas. Além disso, próximo ao chão, havia duas grades de ventilação e uma porta de ferro pequena.
Enquanto ainda examinavam a fachada, o carro que os seguia parou atrás do carro que eles estavam. Assim, viram que o motorista era Cássio, que caminhou até eles enquanto os dois homens saiam do carro. O padrinho os cumprimentou e olhou para a fachada, soltando um "ah" de surpresa. Mexendo nos bolsos, ele tirou um pedaço de papel maior do que o de Ernesto que continha outra parte da logomarca do bar. O pedaço havia sido encontrado no lixo do apartamento do deputado.
Ernesto voltou sua atenção ao bar e Reginaldo explicou que o porão servia como depósito e acesso para o recebimento das bebidas e outros insumos. Como de fora não era possível ver nada, os dois decidiram entrar e, então, Cássio se ofereceu a ir junto por ter obrigações para com a afilhada. O homem estava visivelmente emocionado e não foi impedido,entrando todos os três no bar com a condição de que o padrinho não interferisse no trabalho deles.
Ernesto forçou a maçaneta e abriu um pouco para examinar o local: as luzes estavam acesas para compensar a escuridão das janelas bloqueadas por painéis de madeiras pintados com desenhos semelhantes a hieróglifos. Um homem que estava ao fundo limpando o chão chamou-lhe a atenção com um assovio e avisou que o bar estava fechado. Ernesto entrou, se apresentou e explicou superficialmente sobre a investigação, apresentando a foto de Jussara para que o funcionário, chamado Sérgio, analisasse e dissesse quando havia visto a moça pela última vez.
Sérgio pegou a foto e a examinou por alguns instantes, devolvendo com um semblante de desprezo e meneando negativamente a cabeça. Ernesto insistiu cordialmente para que ele olhasse a foto novamente, que tentasse se lembrar, mas Sérgio foi enfático em sua negativa. Cássio explodiu em raiva e vociferou que o funcionário mentia, avançando contra Sérgio com uma arma e pressionando-o a falar onde estava sua afilhada. Quando o homem tropeçou e caiu no chão, Cássio ajoelhou-se sobre ele e mirou a pistola em seu rosto. Reginaldo pensou em avançar para salvar o homem, mas Ernesto o impediu, sussurrando que Cássio não estava com o dedo no gatilho. A pressão do momento fez Sérgio dizer tudo que sabia, mas não era suficiente para o padrinho; que exigiu uma revista em todo o espaço do bar.
Ernesto e Reginaldo foram ao subsolo, enquanto Cássio levou o homem a percorrer os cômodos do imóvel. Ao descerem, não perceberam nada estranho no depósito de dois metros de altura com bebidas, utensílios de cozinha, caixas, produtos de limpeza, ratoeiras desarmadas e alguns freezers. Reginaldo decidiu abrir todos os freezers para saber o que tinha dentro e encontrou apenas alimentos congelados. A decepção também lhe trouxe tranquilidade em saber que Jussara não havia sido vítima de algum crime horrendo ou, ao menos, era o que parecia.
Ernesto já retornava ao bar quando Reginaldo encontrou um ralo no chão. O ralo estava quase um metro abaixo do nível da rua e não seria funcional, além disso, estava preso a uma tampa de concreto que lhe gerou mais curiosidade. Ele foi até a caixa de ferramentas, pegou uma chave de fenda e arrancou o ralo. O veterano retornou alguns degraus e mandou o novato voltar ao bar, mas não obteve sucesso. Poucos segundos depois da retirada do ralo, a escuridão que era possível ver dentro do ralo começou a deslocar-se para fora, como um manto vivo de preto perfeito, sem reflexo ou contornos. Reginaldo se afastou na direção oposta à porta e foi aos poucos sendo seguido pelo pseudópode. Ele não conseguia dizer muitas coisas além de palavrões e perguntas com os mesmos palavrões. Sua mente estava bloqueada para reagir, mesmo que a coisa não fosse rápida. Ernesto ficou parado, contemplando-a por alguns segundos até ser chamado de "Nesto" por Reginaldo, que estava sobre um freezer, agachado.
Instintivamente, Ernesto sacou seu revólver e atirou diretamente no ralo três vezes, sem sucesso. A coisa parecia ter sentido algo, mas continuou se esticando em direção ao local onde Reginaldo estava.Entendendo que tiros eram ineficazes, o veterano pegou uma lata de querosene em uma prateleira de produtos de limpeza, furou e arremessou-a tão próximo quanto pode do ralo. Ernesto aproveitou o espalhamento da substância para acender todos os fósforos de uma caixa que estava na prateleira e jogou-a sobre o combustível, que acendeu rapidamente. A coisa se retorceu e se dividiu em duas,sendo que uma parte voltou para o ralo e a outra fugiu para debaixo do freezer onde Reginaldo estava. Ernesto gritou para o novato sair de lá e foi milagrosamente atendido, porém, mal o rapaz cruzou a sala, a coisa dentro do ralo subiu em um jato denso como a própria noite e grudou no teto do porão,enquanto seu fragmento subia devagar a parede oposta à porta de saída. Ernesto forçou a porta para dentro, mas ela abriu facilmente, e ele saiu puxando Reginaldo consigo até a rua. Nenhum dos dois parou um segundo para ver onde estava Cássio ou Sérgio,apenas entraram no carro e partiram.
Conforme Ernesto dirigia e sua mente se reorganizava, ele percebeu que Reginaldo ficava apenas repetindo a mesma coisa: "que merda é essa?", uma das perguntas que ele havia feito quando a coisa saiu do ralo foi em sua direção. Ernesto repassava mentalmente a cena e tentava mensurar o risco que teriam passado. Não entendia como aquele ser vivo podia agir e se dividir, um ser aparentemente sem braços, pernas ou cabeça, como uma planária dos livros didáticos dos seus netos e que sempre se destacava por sua capacidade de gerar várias cópias de si se fosse cortada. Contudo, a coisa não era uma planária ou qualquer coisa conhecida.
Ao estacionar o carro na agência, Ernesto retirou Reginaldo do veículo e o levou para dentro. Salomão viu a cena e se levantou de sua cadeira rapidamente, vindo ao encontro dos homens, assustado.Ernesto tentou explicar a pista que ele tinha para encontrar Jussara e a visita a um bar com a participação de Cássio. Quando citou o nome do padrinho, Salomão o interrompeu, dizendo que o homem ligou havia algum tempo perguntando sobre os dois e que ele explicou ao padrinho que seu sobrinho estava bem adiantado na decodificação do diário. Ernesto deixou Reginaldo aos cuidados de Salomão e começou a pensar. Foi quando teve a ideia de rever a decodificação de Reginaldo,tomando como base a possibilidade do desaparecimento ter sido intencional e coma ajuda de um amante mais velho, esperto e capaz de qualquer coisa para não ser descoberto. Apesar de não ser sua técnica trabalhar com culpados, o evento daquela manhã fazia-o sentir que havia uma urgência em descobrir se não seria Cássio que os levou para o bar para serem atacados por aquilo que ainda não lhe fazia sentido.
Durante a leitura rápida dos textos, o termo habib, que significa "meu querido", começou a aparecer. Relendo as partes escritas em alfabeto romano, Ernesto começou a procurar apenas essa expressão para tentar ver se havia alguma coisa a mais, um nome, um lugar, até que encontrou: "Querido diário. Hoje de manhã o dinho me levou para almoçar fora. Ele queria que alegrar porque meu pai mal falava comigo e a Ceiça estava muito ocupada estes dias que tem jantares quase todo dia com um monte de gente velha e arrogante. Eu queria que o dinho deixasse eu morar com ele e a dinha porque eles são legais comigo. Além da Ceiça, eles são as pessoas que mais gosto, principalmente o dinho."
Ernesto olhou a data: onze de setembro de mil novecentos e noventa e dois. Os jantares deveriam ser de membros do partido do deputado, algo que Augusto parecia se importar muito mais do que com a filha. Ernesto pensou que o "dinho" estava ocupando a função de autoridade desde a partida da mãe de Jussara e esse vínculo estava confundindo a garota que tinha cerca de dezesseis anos na época. Para ele, Cássio poderia ter se aproveitado desse sentimento que claramente foi aumentando. Contudo, isso não explicava a criatura no bar. "Ele sabia da criatura? Foi tudo encenação para entrarmos no lugar e a coisa nos matar?", pensou o detetive, aturdido. Salomão parou em pé ao seu lado e ficou olhando para o velho amigo, enquanto Reginaldo parou de falar e ficou paralisado, chorando silenciosamente.
Uma pergunta certeira feita para Salomão deu ao detetive a certeza que faltava. Naquela manhã, Cássio ligou na agência atrás de Ernesto e foi informado da visita que ele e Reginaldo fariam a um tradutor de árabe. Desejando confrontar o padrinho, o detetive retornou ao bar, mas estava trancado. Foi, então, até a fábrica de Cássio. Ao chegar ao local, foi informado que o proprietário não estava. A secretária deu-lhe um número de telefone para contato em Jacutinga, Minas Gerais, local para onde ele dissera que estaria naquele dia. Ernesto tinha apenas um número de telefone e se agarrou a esperança de que conseguiria encontrar Jussara mesmo assim e levá-la para casa. O problema era que Cássio sabia a maioria de seus passos e isso só dificultava seu trabalho, ou pior, poderia ser perigoso para ele.
Dirigindo para Jacutinga, Ernesto parou no primeiro posto de gasolina após atravessar a fronteira entre os estados. Muito solicita, a atendente do posto afirmou que um carro como o de Cássio não passou por ali, o que preocupou o detetive, pois poderia ter sido enganado. Então, tentou fingir que ligou por engano para o telefone passado pela secretária e perguntou com uma voz disfarçada ao homem do outro lado da linha de onde falava. A voz desconhecida apenas afirmou que era um telefone particular e desligou.
Sem mais ideias, Ernesto se sentou em uma cadeira e pediu algo para comer, entristecido. Em sua vida profissional seria sua segunda falha, sendo que a primeira havia ocorrido no início da carreira e a vítima desaparecida havia sido encontrada em estado de decomposição. Ele prometeu na época que nunca mais se envolveria neste tipo de trabalho, mas o caso de Jussara parecia ser fácil, proposital. Além disso, não tinha uma prova sequer contra Cássio e não terminaria o serviço sem encontrá-la, uma mancha para si no fim da carreira.
Após meia hora em silêncio, o telefone tocou, mas Ernesto não reagiu. Estava longe de todos que conhecia e ninguém sabia onde estava, porém, a atendente o chamou. Do outro lado da linha, a voz desconhecida foi breve e afirmou que Cássio queria resolver tudo naquele dia e que era para esperar no posto. Confuso, Ernesto apenas perguntou como havia sido encontrado e o homem explicou que tinham identificador de chamadas e Cássio sabia onde ele estava.
Ernesto ficou esperando com a arma destravada em seu bolso. Após pouco tempo, o carro de Cássio apareceu no posto e um desconhecido que saiu do veículo cumprimentou o detetive. Ernesto exigiu revistá-lo e ao carro e foi prontamente atendido, mas nada encontrou, nem mesmo um canivete. Parecia seguro e ele sentou-se no banco do passageiro, atrás. Eles seguiram viagem por uma estrada simples e sem acostamento. A luz crepuscular era a única naquele local onde só se viam árvores e pastagem para todos os lados. O motorista dirigia em silêncio e apenas olhava a estrada. Ernesto, por sua vez, tentava memorizar qualquer ponto de referência, mas era quase impossível.
Já era noite quando o carro entrou em uma estrada vicinal e Ernesto apalpou o local do revólver, averiguando instintivamente. Em poucos minutos, o carro aproximou-se de duas colunas de concreto sem porteira e estacionou próximo a um sobrado antigo com apenas uma luz acesa, mas fraca. O motorista parou, desceu e aguardou Ernesto.
O motorista e o detetive caminharam paralelamente a lateral do sobrado e seguiram um caminho de terra por entre as árvores até que, ao fundo, o detetive viu uma grande e assustadora silhueta retangular. Aproveitando-se da escuridão, Ernesto pôs seu revólver no bolso da calça, próximo à mão direita, e o homem não percebeu. Quando a silhueta ganhou leves contornos, o homem o orientou a caminhar tocando as paredes para saber onde estava. Ernesto hesitou e recebeu apenas um aviso de que sairia como entrou se seguisse às ordens. Em silêncio, ambos entraram na total escuridão de uma porta que lembrava a criatura do bar.
Na entrada, Ernesto percebeu que havia uma rampa de solo firme que mantinha a aderência dos pés, como um piso de cimento grosseiro. O caminho na escuridão possuía curvas suaves sempre para a esquerda e, após a última curva, ele viu a silhueta do homem que ia à frente. Ao final da rampa, o desconhecido entrou em um salão amplo e pouco iluminado por belas lanternas de bronze com luzes oscilantes. Ernesto se lembrou das lamparinas à óleo do sítio de seus avós quando ele era garoto e sentiu menos amedrontado.
Eles adentraram alguns passos no grande salão e o homem a sua frente falou algo em um idioma que Ernesto não compreendeu, mas supôs ser árabe. Ao terminar de falar, o homem abaixou a cabeça, girou o corpo para o lado, afastou-se de costas e, em voz baixa, disse para Ernesto avançar e fazer reverência. Porém, uma voz ecoou em todo o salão e disse que Ernesto era convidado e seria tratado como tal. O detetive procurou a origem da voz, mas ela parecia não ter origem definida, mas viu que do fundo da grande sala saiu do meio de uma imensa sombra um homem de túnica totalmente preta, como as sombras ao redor. O homem fez uma breve reverência e Ernesto retribuiu o gesto, acreditando ser o melhor a fazer. O detetive olhou para os lados e não viu mais ninguém – estavam apenas os três.
Aos poucos, o homem avançou pela sala, como se flutuasse, enquanto todo o ambiente parecia segui-lo, deformando a percepção do espaço do salão para Ernesto. O anfitrião se apresentou como Sharan Al-Arydhah e Ernesto também se apresentou, mas Sharan já sabia. Ele adiantou que sabia de toda a história que levou o detetive até ali: como o veterano deduziu, Cássio havia levado Jussara a pedido dela, mas a fuga foi um desastre quando a garota pegou a valise do pai como vingança, fazendo Augusto contratar um detetive para seguir a moça e encontrar seu dinheiro.
Ernesto acreditou que o motivo era dinheiro, mas não entendia por que a garota fugiu para um lugar ermo. Com a certeza de que tinha total poder sobre o que estava ocorrendo ali e, desejando encerrar a conversa, Sharan deixou claro que Jussara estava ali por ele, enquanto a valise incólume seria devolvida ao deputado ganancioso. Ernesto pôs a mão no bolso e afirmou ao anfitrião o que precisava levar a garota e a valise e era inegociável. No mesmo momento, Ernesto viu as paredes se tornando absolutamente pretas e sem qualquer reflexo da luz das lanternas espalhadas pelo recinto. No chão, apenas os locais onde ele e o motorista estavam pisando conservaram a aparência do cinza escuro do chão de concreto – todo o resto era opressivo e sem forma. Sharan olhou para ele e disse, com uma voz profunda, ampliada e onipresente, que Ernesto não poderia desrespeitar a generosidade de um anfitrião.
Ernesto, apavorado, percebeu naquele instante que o movimento das sombras no ambiente não era causado pelo movimento dos pontos de luz, mas porque Sharan convertia o ambiente para algo desconfortável e adimensional. Era como se o detetive pisasse no último fragmento de todo o universo junto com o motorista, como se todas as estrelas tivessem irreversivelmente se apagado para sempre e eles fossem os últimos seres vivos. Aos poucos, as luzes das lanternas se tonaram turvas e Ernesto desmaiou.
Ernesto acordou no banco traseiro do carro de Cássio, parado no estacionamento do posto e o motorista estava sentado enquanto ouvia o jornal da rádio local. Ao seu lado, estava a valise do deputado, fechada, e ele não tentou abri-la. Ao perceber Ernesto acordado, o motorista apenas gesticulou para que saísse e, antes de sair, o detetive perguntou o que havia ocorrido. O motorista apenas disse que ele havia encontrado o que procurava, e nada mais.
Ernesto mal fechou a porta ao sair do carro e o motorista partiu rapidamente, tomando um caminho diferente do qual havia feito antes. O detetive acompanhou com os olhos o carro, parado e em pé. Como ficou estático por muito tempo, a atendente o abordou para saber se estava tudo bem. Ernesto assentiu, agradeceu e partiu e, enquanto dirigia, pensou sobre quais as chances de ter imaginado Sharan, concluindo ser poucas. Não teria como tê-lo inventando com tanta riqueza de detalhes. Além disso, tinha certeza de que nada entre o céu e a terra explicaria um sentimento de inferioridade que voltava sempre que se lembrava do vazio. Apesar de tudo que passou, estava satisfeito em não ter sido subjugado pelo perigo iminente encarado duplamente, ao contrário de Reginaldo, com a alma quebrada ao se deparar com apenas uma fração do que deveria ser o poder de Sharan. Ele pensou que se o novato visse o mesmo que ele, poderia enlouquecer permanentemente.
Ernesto se alternava entre o alívio por ter saído ileso do salão e o sentimento de impotência em ter ficado totalmente a mercê das decisões de Sharan que, apesar de ser educado e não o ter ameaçado, tinha deixado bem claro que só havia uma decisão correta, como um falso livre-arbítrio que pune os corajosos.
O veterano retornou para a agência que já estava fechada e ligou para Salomão. O amigo assustou-se, mas tentou atender ao pedido do detetive sem questionar – ele ainda estava assimilando a ideia de que o sobrinho teria que ficar no hospital por alguns dias devido um caso grave de nictofobia. O rapaz não podia ver qualquer sombra que começava a mutilar-se com arranhões e a gritar descontroladamente. Os médicos não sabiam o que desencadeara, mas suspeitavam que era decorrente de um trauma forte.
Enquanto aguardava Salomão buscar a valise,Ernesto ficou sentado na agência à meia-luz, refletindo sobre aquele trabalho.As sombras não o incomodavam como nunca incomodaram, nem mesmo após os encontros no bar e em Jacutinga. Para ele, as sombras ainda eram apenas a falta de luz; não existia maldade na sombra ou na noite como não existia bondade na luz ou no dia.O que lhe parecia naquele momento, comparando o salão quase escuro de Sharan com Augusto em sua sala ricamente iluminada era que tudo estava ligado ao caráter. A luz serve apenas para oprimir os desejos malignos ou explicitá-los quando ocorrem. O mal fica escondido no coração, e não nas sombras.