
Aquilo veio com o crepúsculo
A primeira vez que percebi que alguma coisa estranha estava acontecendo por aqui foi no domingo de manhã, na missa. Seu Adamastor e sua família eram pessoas que sempre estavam na missa na capelinha de Nossa Senhora do Rosário que tinha na fazenda Alvorada do Senhor João Gabriel. Nossos sítios eram próximos, coisa de uma hora a pé de porteira a porteira, mas não podia ir até lá naquele dia por que chovera à noite e a estradinha estava enlameada demais. Pensamos que havia ocorrido algum problema no caminho e deixamos para verificarmos depois. É curioso como nossa mente sempre escolhe respostas mais simples quando estamos tranquilos e as piores quando estamos com medo. Naquele momento, estávamos todos considerando que não deveria ser nada de mais.
Após a missa, o sol abriu e a estradinha secou um pouco até o meio-dia. Pedi para Marcos, meu filho mais novo, ir até a casa de Adamastor para saber se estava tudo bem. Marcos demorou pouco mais de duas horas de jumento para ir e voltar, trazendo a notícia de que não havia ninguém na casa. O menino não entrou, mas chamou do quintal por alguns minutos, mas não teve resposta alguma. Ainda, naquele momento, eu estava tranquilo. Não é incomum que as pessoas precisem sair para visitas à parentes e, às vezes, não avisem a todos.
Na segunda-feira, eu fui até a fazenda Alvorada. Pensei que se alguém soubesse do paradeiro de Adamastor e sua família, esse seria o Senhor João Gabriel. Meu primo Ebenezer, que era feitor da fazenda, sabia do sumiço e disse para mim, à boca miúda, que "nem o coronel João sabia". Prometi silêncio e voltei para casa. Minha esposa perguntou o que eu havia descoberto e preferi dizer que não consegui nada por que o senhor João estava ocupado. Não sabia quanto tempo o segredo ia ficar protegido, então, preferi ir até a vila comprar mais bala para minha espingarda e deixar meu facão bem amolado. Ainda estava pensando que não era nada de mais, mas seguro morreu de velho e precisava proteger a minha casa se fosse algo sério, além de saber que, se as pessoas ficassem com medo, elas comprariam toda munição e demoraria semanas para o armazém da vila repor o estoque.
A semana foi de muito trabalho e quase não pensei no sumiço de Adamastor. A chuva da noite de sábado para domingo quebrou algumas cercas e parte do telhado do celeiro e eram essas coisas as minhas prioridades. Até mesmo os pintinhos de uma galinha que morrera durante a chuva eram mais importantes para mim naquele momento do que os desaparecidos. Porém, Adamastor era assunto recorrente pelos vizinhos que passavam em casa para conversar. Um ou outro comentava sobre ele, mas ninguém sabia o que havia acontecido, exceto por uma informação que foi adicionada ao incidente e que passou a causar preocupação e medo entre os sitiantes: As roupas, os móveis e os animais estavam no sítio. Era consenso de que ninguém em sã consciência deixaria suas posses para trás e sairia sem avisar a ninguém. Como um ato de respeito que era mútuo em nossa comunidade, o filho de um dos vizinhos ficou de cuidar dos animais enquanto não se sabia se a família voltaria para casa.
No sábado de manhã, enquanto eu alimentava as galinhas, fui chamado pelo meu filho mais novo. Havia um cavalo encilhado parado em frente ao sítio. No momento que vi, pensei que havia acontecido algo com o dono do animal, que era um vizinho distante de meu sítio. Preferi não ir até o sítio, mas sim à fazenda Alvorada. Contudo, ao me aproximar da fazenda, vi que havia um pequeno grupo de pessoas na entrada do casarão.
Continuei minha viagem até a fazenda e encontrei um dos funcionários em frente a porteira. Ele me disse que a multidão estava sabendo sobre o sumiço da família de Adamastor e do outro vizinho que eu tinha o cavalo em minha posse. A principal preocupação era o que estava causando os sumiços, se as pessoas estavam partindo ou não. Voltei em silêncio para casa e não disse mais nada. Estava com medo como aquelas pessoas e, por isso mesmo, ficar ali não ajudaria em nada. Meu pai dizia que não era bom se juntar muita gente maluca ou com medo de alguma coisa que sempre um tem uma ideia estúpida que os outros acabam apoiando sem pensar.
No domingo, a missa foi incomum. Muitas conversas paralelas e um burburinho antes da chegada do padre. Quando a missa começou, o povo respeitou o rito e ficou em silêncio, mas voltaram a falar logo após a saída do padre. As pessoas ficaram em frente a capelinha por algum tempo, até os funcionários da fazenda pedirem para todos partirem e voltarem para suas casas. Alguns não voltaram diretamente. Antes do meio dia, era possível ver duas colunas de fumaça vindas do oeste. Depois, fiquei sabendo por Ebenezer que um grupo foi até o sítio de Adamastor e queimou tudo que podiam, seguindo logo depois até o outro sítio onde fizeram o mesmo. Ele disse que alguns achavam que havia alguma maldição e que poderiam impedir que continuasse se queimassem as coisas dos desaparecidos. O rapaz que cuidava da casa de Adamastor quase foi morto durante o ataque, pois achavam que ele deveria estar amaldiçoado. O pouco de razão que sobrou no grupo foi usado para testá-lo e, quando ele não repudiou a santa cruz, foi liberado. Foi aí que tive mais uma prova de que meu pai não falhara em sua sabedoria.
Uma informação ou outra chegou até meus ouvidos durante a semana que se seguiu. A família de Orestes deixou espontaneamente o próprio sítio e levaram tudo que puderam. Quando a família de Sergio – a terceira família – sumiu misteriosamente na quinta-feira, creio que Orestes estava bem longe dali. Após esse terceiro sumiço que percebi o que Orestes já havia suposto: as famílias estavam sumindo uma a uma, no sentido do pôr para o nascer do sol, na região do sítio dele. As famílias passaram a pressionar o padre da vila a fazer alguma coisa, transportando o homem em uma carroça de casa em casa para abençoá-las. Foram dois longos dias de viagem para o padre, indo de sítio em sítio, abençoando até mesmo os animais. Quando estava para passar nos últimos sítios, Ebenezer acompanhou padre e o levou para a fazenda, onde ele poderia pernoitar. Aquela noite, o padre comeu bem e dormiu em um quarto arrumado especialmente para ele. A missa foi semelhante à do domingo anterior, com exceção da homilia, que parecia uma tentativa de apaziguar os ânimos daquela comunidade.
Infelizmente, o pastor daquelas ovelhas se ausentou misteriosamente. Na casa paroquial que ficava na vila, muitas roupas ficaram no mesmo lugar. Um grupo pequeno de moradores da região o qual eu fazia parte optou por acreditar que o padre apenas fugiu de medo, enquanto a maioria afirmou que nem mesmo o padre havia escapado da maldição. Neste momento, algumas ovelhas se tornaram lobos e passaram a ser imprevisíveis em suas ações, como meu pai dissera que acontecia em situações extremas. Preferi voltar para meu sítio e sair apenas em situação de emergência. Antes de anoitecer, fechei a casa toda e apaguei a lamparina. As crianças ficavam no quarto com apenas uma vela e todas as janelas tinham panos para evitar que a luz saísse pelas frestas. Passei a dormir no chão da cozinha e alternava vigília com Silas, meu filho mais velho.
Na primeira semana após a fuga do padre, vi duas colunas de fumaça: uma ao noroeste, do lado oposto à fazenda Alvorada, e outra ao sudoeste. Mandei Silas para o sudoeste para ver o que estava acontecendo e disseram para ele que alguém entrou em um sítio à noite e José Maria, dono do lugar, atirou sem perguntar. No susto, a filha de José derrubou uma lamparina de vidro que queimou a casa mas, por sorte, todos conseguiram escapar. Sem outra escolha, a família levou o que restou para o celeiro e passaram a morar lá. Disseram para eles morarem na casa de Orestes, mas José Maria não queria arriscar ficar perto das outras casas amaldiçoadas. A casa do noroeste era da viúva Madalena, que vivia com dois filhos. Todos sumiram na quarta-feira.
Quando ainda havia sete sítios e uma fazenda habitados, cada pessoa que ainda tinha coragem de sair e passava pelo meu sítio contava uma história: Eupídio dissera que tudo que estava acontecendo era obra de magia negra, enquanto Antônio passava de sítio em sítio fazendo a cabeça de todos de que o culpado era o "turco", um caixeiro viajante chamado Almir e que morava na vila, mas que passava de vez em quando nos sítios apresentando seus produtos. Almir, que não era católico, oferecia tecidos e outros itens e, sabendo que não era comum termos dinheiro, trocava por animais, milho ou alguma coisa que pudesse revender depois. O preconceito de Antônio selou o destino de Almir, que tinha chegado da capital com novos tecidos e fora vendê-los nos sítios. Nair me contou depois que ele estava muito feliz e que tinha conseguido bons descontos em muitos itens, principalmente nos tecidos, e pretendia tentar trocá-los com animais para vender no açougue. Porém, ao passar pelo sítio de Sebastião, o mesmo mandou seu filho mais novo para o sítio de Antônio e este chamou os demais sitiantes que apoiavam suas ideias para tirar satisfações.
Almir fora abordado no meio do caminho entre o sítio de Alberto e de João da Gaita. De espingarda em punho, Antônio começou a pressionar para Almir dizer o que tinha feito com as famílias de Adamastor, do outro vizinho, de Sergio e da viúva Madalena. Almir começou tentando ser mais amigável possível, mas os homens ficavam mais e mais agressivos. Com medo, Almir enrolava português com sua língua e as coisas iam piorando. Sebastião era o mais supersticioso e começou a gritar com Almir, mandando que ele se calasse e parasse de os enfeitiçar. A desordem acabou por ser fatal para Almir, que foi baleado por Sebastião no peito. Tudo que Almir carregava na carroça e até mesmo o burro que a puxava foram destruídos e queimados. Eu tinha certeza que o caos estava instaurado e mais mortes poderiam ocorrer. Sebastião foi acusado, preso e levado para a vila, onde ficou em custódia por um dia. Foi solto por que ninguém testemunhou contra ele. Novamente em casa, ele dizia animado que tinha resolvido o problema dos sumiços. Enquanto isso, Nair ficou na cidade com o filho Omar, com medo de ter o mesmo destino que o marido.
Não teve missa naquela semana e aparentemente ninguém sentiu falta. Minha esposa rezava o terço diariamente enquanto cuidava da casa. Creio que essa foi a atitude da maioria das mulheres dos outros sítios, muito assustadas, mas com muita fé para continuar vivendo. Porém, minha esposa parou de rezar quando viu a quinta coluna de fumaça. Preferi ver com meus próprios olhos o que havia acontecido e encontrei o celeiro de José Maria ainda queimando. Eupídio queimara quando fora ao sítio e encontrou vazio, deixando o aviso com o vizinho Alberto de que ele tinha dito que era magia negra. A morte de Almir não pôs fim aos desaparecimentos e era um sinal claro para Eupídio e sua família deveriam partir. Então, Eupídio partiu.
Eu não acreditava em nada daquilo. Era um homem de fé, mas achava tudo absurdo. Eu tinha certeza de que alguém estava fazendo algo contra essas famílias. Minha primeira suspeita foi o próprio João Gabriel por ser a pessoa mais rica dali. Ele poderia ter começado pelo sítio mais distante e vindo aos poucos, atacando sítio por sítio a cada seis dias. Sergio fora atacado na quinta, Madalena na quarta e José Maria na terça. Assim, Adamastor deveria ter sido atacado no sábado e o próximo seria na segunda. Passei a chamar o atacante de "Seis-seis-seis" pela sua frequência e, por que não, pelo ato diabólico de sumir com famílias inteiras e causar discórdia entre os que ficavam.
Antes de tirar todos do meu sítio e eu ficar de campana sob uma cabana de folhas de bananeira improvisada, eu avisei ao vizinho Antônio que deixaria o sítio com todos e pedi que ele guardasse segredo. Não tinha mais estima pelo homem, mas sabia que ele era um bom guardador de segredo. Eles partiram ainda na segunda de manhã e eu pretendia ficar no sítio para ver se alguma coisa apareceria. Pela ordem dos eventos, o meu sítio seria o próximo a ser atacado e acreditei que seria minha única chance em ver o que estava invadindo os sítios. À noite, minha família estava escondida no sítio de Adamastor, onde montariam uma cabana improvisada para aguardar até que eu desse alguma informação. Deixei uma cruz pregada na porta e um lampião preso ao batente, aceso para me ajudar a ver a cara do invasor. Por uma questão de proteção, deixei minha espingarda e o facão com minha esposa e fiquei apenas com uma faca sorocabana, herança de meu pai, e um canivete. Minha esperança era de que não precisaria usar nenhuma das duas armas.
Enquanto anoitecia, senti o clima ficar estranho. Uma estranha neblina estava rodeando minha casa, mas era possível sentir que ela exalava um cheiro por que a leve brisa da noite levou um pouco daquela neblina até onde eu estava. Quase adormeci antes da chegada do invasor, porém, ao primeiro ruído, mantive-me alerta. Em um primeiro momento, era possível ouvir o som do vento passando pelas árvores, apesar de não estar ventando realmente. O invasor, para minha surpresa, não era ninguém. Não que ele não existisse, mas que eu não podia vê-lo. Creio que tenha sido a parte mais difícil daquela noite: saber que ele estava lá mas não era possível enxergá-lo ou saber se ele era realmente o diabo como supunha Eupídio. Acredito que não deveria ser o diabo de verdade, pois ele manipulou a cruz, retirando-a do lugar e tentando colocar de volta. Porém, como não conseguiu, deixou cair no chão. Depois, tentou mexer no lampião, tocando diretamente no vidro quente. Eu ouvi algo como pequenos estalos e um sibilo, provavelmente causados pela queimadura e pela dor que a coisa sentiu. Após isso, o lampião ficou no mesmo lugar, intocado. Foi aí que tive certeza de que não era o diabo ou que era um fantasma.
A coisa entrou na casa facilmente, empurrando a porta. Era possível ouvir que alguns objetos da cozinha caiam ao chão, como os pratos de ferro e os copos de barro. Após alguns minutos, a porta da cozinha abriu novamente e a coisa deve ter partido imediatamente, junto com a neblina. Eu ainda fiquei de prontidão por algumas horas até dormir de cansaço, deitado sob a cabana improvisada. Acordei com a alvorada, ainda cansado, mas totalmente ileso. Não havia nenhuma coluna de fumaça no céu, o que me causou certa esperança de que ninguém havia desaparecido naquela noite. Caminhei até a casa e vi o que havia acontecido: dois copos de barro e um de ferro estavam no chão, dois pratos esmaltados também, assim como o quadro de meus pais que estava no corredor e um pequeno espelho que tinha em cima de um baú.
Voltei para a cozinha e procurei o pão que estava guardado em um pano de prato sobre o fogão a lenha. O mesmo estava lá, mas tinha um cheiro estranho e uma mancha de alguma coisa que não sabia o que era. Supus que a coisa havia tocado no pão e deixado aquela mancha e, então, joguei tudo fora. Dentro da despensa havia ainda um pote com farinha de milho que usei para fazer um xerém que comeria de manhã. Aproveitei uma brasa que tinha no fogão e acendi novamente o fogo. Após preparar minha primeira refeição, saí para verificar se mais alguma coisa estava fora do lugar enquanto comia. Quando saí, vi a fumaça vindo da direção da casa de Antônio. Preferi não ir até o sítio para saber e apenas fiz a conta de quantos lugares ainda estavam habitados: os sítios de João da Gaita, Alberto e Sebastião e a fazenda de João Gabriel.
Em seis dias, haveria um novo ataque e o sítio de João da Gaita era o alvo óbvio para mim. Fui pensando nisso enquanto caminhava até o sítio de Adamastor para ver como minha família estava. Apesar de estarem assustados, vi que todos estavam bem e aproveitei para contar o que tinha acontecido durante a noite. A solução que chegamos era de queimar o invasor dentro da casa de João da Gaita, aproveitando-se da curiosidade da coisa que não pensou duas vezes antes de entrar na nossa casa e revirar tudo que pode. Levei minha família para ficar na casa de Orestes e os preveni de não dormir lá dentro – apesar de ficarem ao relento, ao menos a casa poderia ser usada enquanto estivesse de dia.
Ficamos aquela noite no sítio de Orestes e não vimos nada de estranho. Dormimos sem maiores problemas no quintal, sob a carroça. Na manhã seguinte, fui de jumento até a fazenda Alvorada para falar com João e, qual foi minha surpresa ao encontrar todas as famílias remanescentes acampadas no local. Apesar do susto ao me verem, Ebenezer autorizou minha entrada e eu consegui conversar com João Gabriel. Apresentei minhas informações e minha proposta, que foi ouvida prontamente. João escolheu alguns de seus capangas e eu me comprometi a ajudar contra o invasor no seu próximo ataque. Enquanto o dia não chegava, preferi ficar com minha família, que estava mais tranquila e começaram a dormir na casa, evitando apenas deixar velas e o lampião acesos. Silas queria participar e autorizei que ele ajudasse a atacar a coisa, mas ele deveria ficar ao meu lado. Se ocorresse algum problema, eu estaria ali para defendê-lo.
Na tarde de domingo, o grupo de homens do coronel e eu fomos para a casa de João da Gaita levando garrafas de vidro cheias de querosene. A ideia era jogá-las com o chumaço de pano aceso em todas as portas e janelas para que a coisa não escapasse com vida. Montamos várias barracas com galhos de árvores que parecessem discretas durante a noite a uma distância que parecia ser suficiente para não ficar perto da neblina que viria com o anoitecer. Ficamos em silêncio, cada um em sua barraca, munidos de uma garrafa e uma caixa de fósforos. Logo após os últimos raios do Sol se forem, vimos a coisa começar a mexer na porta.
Quando os primeiros fósforos começaram a acender os chumaços de pano, ofereci a minha caixa para meu filho acender. O garoto estava visivelmente nervoso e derrubou a caixa de fósforos aberta no chão, espalhando o seu interior na grama alta. Estava escuro e ele se agachou para pegar, mas os capangas já estavam arremessando suas garrafas, causando grandes bolas de fogo nas janelas e portas. Eu estava incumbido de incendiar apenas uma janela, que ficava do lado da casa, porém, quando consegui arremessar a garrafa, a coisa já havia aberto a janela a saído. A garrafa passou dentro da coisa e fez uma marca escura de queimado que identificava sua localização. Ele vinha na nossa direção, fugindo do incêndio. Eu tive alguns segundos antes dele chegar e apenas empurrei meu filho antes de tudo ficar escuro. Por um segundo, pensei que morreria.
Como está claro, eu não morri. Silas e eu não sofremos um único ferimento, apesar de tudo que se sucedeu. Pelas informações que tive, a coisa ainda apareceu mais duas vezes e levou mais algumas pessoas antes de nunca mais aparecer. Enquanto estivemos ausentes, tivemos alguns sonhos vagos, algumas alucinações mais claras com um lugar parecido com um hospital ou algo que o valha. Realmente não sei o que era, mas não sentia medo ou dor. Comecei a suspeitar que havia sido um anjo pois os desígnios de Deus são misteriosos, como dizia meu pai. Não conseguia ter outra explicação além desta, considerando tudo que aconteceu.
Dizem que, uma semana após a coisa aparecer pela última vez, uma grande luz e um grande estrondo vieram do céu e causaram um estrago em toda região, mas com estragos maiores nos sítios e na fazenda Alvorada. A destruição foi maior entre os sítios de José Maria, Eupídio e o meu que, para minha desgraça, já estava reabitado por minha esposa e filhos mais novos. Silas havia desaparecido comigo, então, fomos os únicos sobreviventes de minha família. Aliás, esse foi o grande mistério que se tornou discussão na vila, na cidade e até na capital: as únicas famílias que estavam ilesas eram as que haviam sumido antes do grande estouro, como a de Adamastor, de Madalena e de José Maria.
Outros sítios também foram destruídos quase completamente e as árvores derrubadas pela raiz. A sede da fazenda Alvorada foi quase toda destruída e João Gabriel quase morreu, enquanto algumas casas na vila, mais de uma légua da fazenda, também caíram. Uns cientistas da capital apareceram para estudar o que teria acontecido e disseram que foi um meteoroide, um tipo de pedra grande que cai do céu raramente, como uma estrela cadente. Perguntei para eles sobre a coisa que apareceu e nos atacou, se assim posso dizer, mas eles disseram que não havia nenhum tipo de informação a respeito disso. Sem provas, os homens recolheram os restos do meteoroide que encontraram e partiram. Os que presenciaram a destruição ficaram perdidos por algum tempo, morando em tendas improvisadas e com muita dificuldade de retomar suas vidas. Eu fiquei de luto pela minha família, mas acabei me casando novamente com Madalena um ano depois, sendo frutífero o matrimônio. Os que voltaram como eu reconstruíram suas vidas mais rápido e prosperaram também. Madalena e eu unimos os nossos sítios, adquirindo anos depois os sítios de Orestes e Eupídio.
Ainda tento entender o que aconteceu naquela época e por que fomos salvos. Adamastor e muitos outros, como eu mesmo, disseram que foi Deus. A única coisa que deixava dúvida era por que Ele não teve mais misericórdia das minhas crianças do que de Antônio, que também foi salvo, apesar de ter tirado a vida de Almir e desobedecido um dos sete mandamentos. Ter fé naquele momento demandava um desprendimento de minhas convicções e uma busca de paz de espírito em detrimento de minha própria razão. Aliás, a razão foi outra coisa que me chamou a atenção, tanto em mim, quanto em todos os outros salvos com quem conversei: havia uma melhor fluência na fala quando nos comparávamos aos que ficaram, até mesmo nossas ideias pareciam mais claras, o que nos dava certa vantagem em relação aos outros. Aproveitamos isso e, como já disse, prosperamos.
Posso dizer que, apesar de tudo, sou grato por ter sido salvo por aquela coisa que não sei o nome e não sei se era algum mensageiro de Deus. Sabemos hoje que muito do que temos passou a existir após sua visita e, além do fato de termos que reconstruir nossas vidas, a única marca visível em nós é essa pequena cicatriz no pescoço que, para mim, é como um sinal de que algum compromisso fora selado conosco enquanto vivermos.